quarta-feira, março 28, 2007

李振藩 CAPITULO XXX: lodo

Todos os dias acompanho as notícias em Portugal. Com um ambiente de trabalho mais frio refugio-me no potencial dos headphones e no streaming da internet. Ganhei o hábito de diariamente entrar no site da TSF e da RTP, ouvir as notícias, o telejornal, ver o Gato Fedorento, as escolhas de Marcelo e mais um ou dois programas de informação que costumava acompanhar.

Depois de dois meses, em Portugal, todos os dias as coisas mudam. Mas basicamente, tudo fica na mesma. As fábricas que fecham, as conversas dos sindicatos, as entrevistas aos coitadinhos. A licenciatura do Sócrates, o regresso do Portas, a palhaçada cor-de-rosa, o Simplex e a corrupção nas universidades privadas. As mesmas pessoas nos mesmos lugares. O melhor de tudo, a escolha de Salazar como o Grande Português, à frente da História do Vasco da Gama, do Infante e do D.Afonso Henriques. Ultimamente fala-se também novamente no novo aeroporto. Estudos de impacto ambiental, estudos orçamentais e estudos com opiniões de especialistas. E com isto 30 anos.

Falam falam falam mas não os vejo a fazer nada. Ou muito me engano ou quando regressar para o Natal, aquele buraco na estrada, junto à escola, ainda lá vai estar.
E a Ota, apenas mais um descampado de lodo.

segunda-feira, março 26, 2007

李振藩 CAPITULO XXIX: Laoxie

Há pessoas de quem, depois de as conhecermos, jamais nos poderemos separar. O Laoxie é uma delas. Depois de dois meses a partilhar com ele o nosso espaço, estou certo que o levarei para onde quer que esta jornada prossiga.

Antes de mais, é uma figura ímpar. Estava habituado a conhecer "mulheres-a-dias". O Laoxie é um "homem-a-dias". O nosso mordomo, como gostamos de o chamar. Trabalha cá em casa três vezes por semana. É perito em deixar o Apartamento 2202 da Qing Dao Lu a parecer um hotel de 5 estrelas: limpa, lava a roupa, passa a ferro, arruma a roupa nos armários correctos e, o melhor de tudo, faz a melhor comida chinesa de Shanghai. Ás 2ªs e 4ªs é certinho! Basta dizer se queremos carne ou peixe, de que tipo, e o "homem" cozinha que é um "disparate". Mais impressionante: tudo isto por 1.5eur à hora.

Hoje deixámos recado para que fizesse uma "saladinha de frutas" com o "material" que tínhamos comprado no Carrefour neste sábado. Pensava que tínhamos sido claros. Cheguei a casa e em cima do prato que jaz na bancada da cozinha estão meia dúzia de laranjas e maçãs, aparentemente acabadas de lavar.

Não é uma salada. É um truque qualquer.
Laoxie, volta que 'tás perdoado.

Aquele abraço,

Huiyi Si


domingo, março 25, 2007

李振藩 CAPITULO XXVIII: Huiyi Si

O teu trabalho de casa é arranjares-me um nome chinês, disse eu à Claire - a nossa professora de mandarim - quando me mandou 2 trabalhos de casa para a aula seguinte.

Tal com os chineses têm o seu nome inglês para ajudar no guanxi (já dei 3 nomes ingleses a chineses desde que cá cheguei!), também quero um nome chinês para mim. A adaptação não é fácil. Rui Silva não parecia aparentemente difícil. Uma mistura Lui Yi Kosita (Rui Costa para os amigos) e Sierwa (aparentemente é a tradução que fazem para Silva dos jogadores de futebol brasileiros) e arranjava-se qualquer coisa. Inicialmente ficou Lui Yi Sierwa (Rui Silva), mas não fiquei 100% satisfeito. Há uma coisa que qualquer estrangeiro, seja individual ou empresa, tem de procurar: um nome com duplo significado. Fonético e interpretativo. Um exemplo simples: o Carrefour, monstro na China, fez uma adaptação do nome quando cá entrou: chama-se Jialefu (lê-se djiálefú). Foneticamente é parecido. E significa Jia (casa) + Le (feliz) + Fu (sorte). Digamos que é a casa onde somos felizes e sortudos. Para os chineses isto significa muito.

E como em Roma sê romano, quero um destes. Depois de negociações, fechei. A partir de hoje tratem-me por Hui Yi Si Xiansheng. Hui Yi (lê-se Rueií) e Si (de Silva). Xiansheng é Sr. Vamos a significados:

Hui: luz, brilho
Yi: ócio, simpatia
Si: responsável, cavalheiro.

Com um nome destes, só falta um passo. Trabalhar num business card condizente.
Depois disso, o céu é o limite.

李振藩 CAPITULO XXVII: não vai a bem, vai a mal.

Ainda não tinha sentido a censura na primeira pessoa.

Sabia que o google e o wikipedia na China funcionam mal, isto é, quando estão online. Ler notícias imparciais na China é para esquecer. Em cada notícia, há sempre 3 tópicos obrigatórios: falar do "partido" (são 70milhões de militantes na mainland China, há sempre um representante do partido em cada empresa para "ajudar" na gestão...), falar da hegemonia chinesa (daquilo que representou na história mundial e acima de tudo daquilo que será daqui para a frente, com uma confiança maior do que aquela que nós tivemos quando chegámos à final do Euro) e obviamente dos EUA, pisando sempre que possível o capitalismo obsessivo.

Com isto posso eu bem. Mas não admito que bloquêem o meu blog. Ainda para mais quando tem o nome de uma figura mítica chinesa como é o bruce lee. Mas assim tem sido. Desde há uma semana para cá não se consegue aceder aos blogs do blogspot, porque estão censurados. Acontece de vez em quando, é mesmo assim.

Mas enquanto as coisas não mudam, e porque não deixo os meus créditos por mãos alheias, arranjei uma maneira de contornar a censura, com um site que me ajuda a entrar no blog sem ser reconhecido. Fight fire with fire, como tem de ser.

Pelo menos por enquanto, mesmo que "ilegal", arrisco-me nos posts.

Se 1semana stop.
não capítulo XXVIII stop.
Venham minha procura stop.

quinta-feira, março 22, 2007

李振藩 CAPITULO XXVI: não me lixem!

Vida de peão é difícil em Shanghai. Porque o peão é o elo mais fraco. Estar sinal verde ou vermelho é quase indiferente. Passadeiras existem, mas de pouco servem. As motas que, como se imagina são aos milhões, funcionam quase sempre a electricidade e por isso não fazem barulho, o que aconselha a que não se desvie o olhar da estrada, mesmo que seja só por 5 segundos. À noite, muitos veículos andam sem luzes.

Já andava um bocado farto de estar no final da cadeia e resolvi mudar alguma coisa. Terça-feira, depois de sair do emprego pus-me a caminho de uma loja de bicicletas. Havia muito material por onde escolher mas com 300RMB (30eur) apostei numa típica pasteleira chinesa: com campaínha, cesto e cadeado. De fato e gravata, pus-me a caminho de casa na minha nova companheira, pelas ruas apinhadas de Shanghai. Por entre milhares de carros, milhares de pessoas e milhões de bicicletas cheguei finalmente perto de casa. Só faltava atravessar por baixo do viaduto e mais 2 minutos para a Qing Dao Lu.

Um apito estridente acompanhado de um grito fez-me soluçar. Era um polícia! Stop, stop! Já com um livrinho de multas na mão, dirigiu-se rapidamente na minha direcção. Com 20% de inglês e 80% de chinês lá nos entendemos. Ao que parece não posso andar de bicicleta em cima do passeio. No mínimo uma explicação inconsequente, porque vejo diariamente centenas de bicicletas e motas em cima de tudo e mais alguma coisa. 5 RMB, paguei eu de multa. Sim, 50 cêntimos de euro. Ridículo!

Pus-me novamente a caminho, agora de mão dada com a minha pasteleira, até o polícia desaparecer da vista. Até casa vi pelo menos mais 5 operações stop deste género, num misto de caça à multa e operação stop. Por estranho que pareça, isto faz-me sentir mais perto de Portugal. Mas desde então pouco mudou. Continuo sem luzes, ando em estradas proibídas, por cima do passeio e nas barbas da polícia. 5RMB de cada vez não me mete medo.

Acima de tudo, sinto-me bem por já não pertencer ao fim da cadeia.


A minha pasteleira em repouso.

李振藩 CAPITULO XXV: por um dia de poesia

    Viajar! Perder países!
    Ser outro constantemente,
    Por a alma não ter raízes
    De viver de ver somente!

    Não pertencer nem a mim!
    Ir em frente, ir a seguir
    A ausência de ter um fim,
    E a ânsia de o conseguir!

    Viajar assim é viagem.
    Mas faço-o sem ter de meu
    Mais que o sonho da passagem.
    O resto é só terra e céu.

    Fernando Pessoa, 20-9-1933

terça-feira, março 13, 2007

李振藩 CAPITULO XXIV: Mãe, o que é hoje o jantar?

Ja não é a primeira.Nem a segunda.Nem a terceira vez. Tenho vindo a fazer menções a comida em quase todos os posts. Às vezes tenho receio que este blog se possa estar a tornar num livro de receitas ou numa espécie de programa culinário. Quase todas as conversas ao almoço falo de comida. Penso em comida durante a manhã. À tarde. Quando durmo. Sonho com comida. Quem me conhece bem sabe que sou fanático por comerzainas. E como qualquer fanático, reservo-me o direito de alguma bipolaridade gastronómica: quando não gosto não toco. Quando gosto, venero! É uma mistura de amor à primeira vista com um toque de sex-appeal, um fenómeno de água na boca permanente.

Desde pequeno que em casa há uma frase que a minha mãe ouve repetidamente, todos os dias: o que é hoje o jantar? Tornou-se um acto reflexo que condiciona o meu dia-a-dia. Todos os dias havia uma resposta. Algumas vezes magnífica. Algumas vezes má. O estranho era que esta resposta tinha efectivamente o dom de poder tornar o resto do meu dia mágico ou, em oposição, trágico. Durante o primeiro mês na China receei sinceramente que a minha paixão por sentar-me à mesa durante 3 horas, partilhar uma refeição com amigos, brindar com um bom vinho e desdobrar uma boa conversa estivesse à beira de ser exterminada. A distância de Portugal, a diferença de costumes alimentares, a inexistência de um restaurante português decente, os ingredientes, a ausência de sabores mediterrânicos, enfim, tudo um pouco, estivesse a colocá-la em risco.

Hoje acordei a pensar que o caso é bem mais grave. Acho que estou a tornar-me obsessivo.

Mãe, o que é hoje o jantar?

segunda-feira, março 12, 2007

李振藩 CAPITULO XXIII: Beijing

Today your dream will come true, disse o guia de 5 em 5 minutos, numa atitude claramente despojada de qualquer contra-pedantismo. Começou às 8 da manhã. Só parou às 17h, quando lá cheguei.

Sexta quase perdi o avião. Sabia que às 19h30 saía de Hongqiao o vôo UH2142 com destino a Pequim. Uma cidade que é do tamanho do Algarve, mas com 10 milhões de pessoas. O fim-de-semana seria mais curto que o normal, porque estas mini-viagens passam sempre a correr. Mas ia ser certamente intensa. Na minha cabeça reservei sábado para ver Tian'an men e a Cidade Proibída, que se estende nas costas de Mao.

No Domingo, my dream will come true. A Grande Muralha da China, mais de 5 mil km que levaram séculos a construir. Impressiona pela dimensão mental - porque da dimensão total nunca nos conseguimos aperceber - pelas imagens que desde criança me habituei a ver e pelo significado que representa para este povo.

Lá em cima, não consegui parar de pensar no que passará pela cabeça dum homem quando toma a decisão de construir uma coisa destas. Não encontrei resposta, mas provavelmente terá sido parecido com o que passou na cabeça de quem, uns séculos mais tarde, decidiu que queria ir à conquista do Mundo, sempre por mar. Ao fim de menos anos, de mais de 5 mil km, e de umas tantas conquistas, "chegou" à China. E viu provavelmente o mesmo que eu.

P.S.:pt.wikipedia.org/wiki/Muralha_da_China

sábado, março 10, 2007

李振藩 CAPITULO XXII: eu dou-me bem com Melhoral

Acordei com a garganta arranhada. Depois de uma noite no Mint até às 3h, não há milagres. É quinta-feira de manhã e o frio que faz em Shanghai não antecipa nada de bom. Preciso de encontrar uma farmácia rapidamente onde arranje umas pastilhas para a garganta. Não vai ser fácil fazer-me entender em chinês mas a necessidade aguça o engenho e pode ser que me safe. Ou não. Não, não é preciso. Casualidade talvez, encontrei esta preciosidade no primeiro centro comercial onde entrei. Uma auto-farmácia: automática como prenuncia o nome, 24/7, com instruções em inglês (embora arcaico), aceita moedas e notas de RMB, emite recibo e não faz distinção entre nativo ou estrangeiro. Ainda não tomei as pastilhas, mas já me sinto melhor.



P.S.: a todos os marketeers e interessados, não me importo de começar a exportar disto para aí. Arranjam-se uns contentores, shipping directo de Shanghai. Faço preço de amigo.

terça-feira, março 06, 2007

李振藩 CAPITULO XXI: Caco de Lusofonia

Depois de uma boa massagem, uma boa refeição. Fui testar, embora incrédulo. Táxi para a Mao Ming Lu, 10 bimbis de táxi e parámos à frente do Sandoz. Acho que é uma adaptação. Já que os chineses têm sempre um segundo nome inglês para a internacionalização, os estrangeiros fazem o mesmo. Deve ter sido isso que o Sr.Santos fez. Deu um jeito na terminação, meteu-lhe um "z" nos queixos para dar um ar latino e a coisa até passa bem. Ou então uma adaptação de Santos para "sandocha" e ficou ali no intermédio para não comprometer.

Andavam-me a dizer há 1 mês que não havia cozinha portuguesa em Shanghai. Além daquela que a rapaziada que chegou comigo faz nas festarolas que se organizam por aí nas sextas-feiras. Na semana passada, uma luz ao fundo do túnel, quando o Kenji chegou com o guia para me mostrar aquilo que já dezenas de vezes tinha negado. Verdade ou mentira, consequência. Um homem em desespero acredita em milagres. Por um caldo verde ou um bacalhau à brás, nesta altura, vou a pé até Fátima.

Subo as escadas. Ouve-se um faduncho, que vem das colunas lá de cima. Uma bandeira portuguesa na parede, dois cozinheiros chineses na cozinha, duas empregadas de olhos em bico, 2 hermanos espanhóis e um casal francês na mesa lá do fundo. Dá-lhe um ar internacional. A má ventilação denuncia o cheiro a fritos. Não há crise. Saia-se daqui a cheirar a bacalhau assado, posta mirandesa e arroz doce e ainda serve para adornar o almoço de amanhã. O menú em chinês e inglês, com traduções sempre difíceis indicia: caldo verde, salada de polvo, chouriço assado e bife à portuguesa. Na secção das bebidas, um tinto do douro e uma sangria para alegrar a equipa.

O chouricinho assado chegou primeiro. As mãos tremiam. Todos queriam ser primeiro, para testemunharem este momento épico que se estava a viver em Shanghai. Depois de um mês de ressaca de dumplings, noodles, arroz e chopsuey, não há um segundo a perder. Terminou em pouco mais de 10 segundos. Não era memorável, mas estava à altura da ocasião.

30 minutos e o bife não chega. Chega o polvo. Cozido, mal amanhado. Depois o caldo verde. É uma espécie de creme de cogumelos instantâneo com uns fios de couve chinesa e umas tiras de bacon. O único chouriço que havia já foi comido.
Começo a pensar que foram matar a vaca a Miranda do Douro e que vem em DHL. 15 minutos mais tarde, o ranger da escada denuncia. Lá vem o bife, empratado, com uns vegetais congelados e umas batatas McCain. Salivava. Batatas para um lado, vegetais para o outro e fui com tudo para cima do bife. Um desconsolo. Não fora a sangria, para aconchegar a queda, e nem tinha chegado lá abaixo.

O choro na voz da fadista encontra eco no nosso desconsolo, já naquele refrão final. Logo a seguir entra o grande Quim Barreiros, com o carro da vizinha. Tão má a comida como a música que lá vem. A terminar, 20 euros por pessoa. Deve ser para pagar os direitos de autor à SPA.

No meu perfeito juízo não voltarei ao Sandoz. Mas não vou dizer nunca mais. Porque um homem em desespero sempre acredita em milagres.





segunda-feira, março 05, 2007

李振藩 CAPITULO XX: 谢谢

谢谢.
O mesmo é dizer xièxiè.
Ou um obrigado. Um obrigado especial a todos vocês que embora longe, espalhados por aí, fazem com que sinta que estou em casa.
Aos que vêm aqui e dão uma vista d'olhos.
Aos que fuçam até ao pormenor.
Aos que deixam comentário.
Aos que queriam deixar mas não têm tempo.
Aos que voltam cá amanhã.
Aos que esperam pelo próximo texto.
Aos que pensam nas cenas do próximo capítulo.
Aos que servem de inspiração.
Aos que querem cá vir mas não têm internet.
Aos que aproveitam 10 minutos no trabalho para ver se há novidades.
Aos que fazem parte deste capítulo. E do que virá a seguir.
Aos que fazem parte desde sempre.
Aos que nem conheço.
Aos que esperam.
Aos que não gostam.

A todos os que aí estão. Agora.

domingo, março 04, 2007

李振藩 CAPITULO XIX: nós por cá

Algumas imagens que não consegui traduzir em post.
Um abraço a todos,

eu

李振藩 CAPITULO XVIII: a este da civilização

Foram 7 dias, esta primeira estadia fora de Shanghai.
São algumas centenas deles daqui para a frente que ajudarão a construir o resto deste livro. Fecho o primeiro volume do Brucelee precisamente aqui. Já lá vai o primeiro mês na China. Já deu para sentir o que é viver neste país. Especialmente depois desta semana a deambular pela província de Sichuan, bem longe da confusão de Shanghai. Já deu para sentir as diferenças entre ser português e chinês, viver na cidade ou no campo e sentir saudades de casa. Esta semana serviu para tudo isso. Para sentir o desconforto de não me conseguir fazer entender, de querer perceber a ementa de um restaurante e não conseguir, de querer uma casa de banho limpa e nem vê-la, de ter de decidir entre comer uma coisa que não me apetece ou então não comer, de passar por pessoas que com 500eur por ano conseguem levar a vida para a frente, de ver sítios que insistem em resistir à globalização.

Acima de tudo, este primeiro volume fecha com fortes ensinamentos pessoais, uma espécie de "chapada" cultural vigorosa, um pouco mais de argumentos que me ajudam a perceber porque duas pessoas iguais, de carne e osso, olham para o mesmo assunto, vêem a mesma coisa, interpretam o mesmo sinal, sentem a mesma atitude, de formas diametralmente opostas. Sente-se algum desconforto inicialmente. Mas rapidamente passa a uma avidez desmesurada, uma espécie de primeiro estranha-se, depois entranha-se. Acima de tudo faz-nos sair do nosso pequeno mundo. Na pior das hipóteses, o meu mundo tem hoje mais de 10 milhões de habitantes...

Antes de prosseguir, sinto-me na obrigação de uma pequena nota, para serenar expectativas. O intuito do brucelee não é ser uma versão assassinada de um qualquer Guia de Viagem, com descrições diárias dos locais, dos horários, dos must do's e must don'ts. Guias há muitos, e recomendáveis. Prefiro antes partilhar convosco pequenas situações e algumas leituras que faço do que por aqui me vai acontecendo. Preferi por isso perder um tempo a encontrar na net uma aplicação amigável que me permita disponibilizar-vos algumas das fotos e deixar a vossa imaginação viajar e questionar. Mas mais do que isso, com um sentimento assumidamente sádico, colocar em cima da mesa a derradeira prova daquilo que estão a perder.

Lição1: A teoria da relatividade na China propaga-se a uma velocidade superior à da luz.

a)Sim, tudo é relativo.

Basta um tempo e um espaço. Percebi isso a 10mil pés de altitude, na viagem para Chengdu. Estenderam-me o tabuleiro e escolhi jïrou. Retiro a tampa, lá estão uns pedações de galinha, arroz branco e uns bróculos cozidos a vapor, com um ar bem ocidental.
Na Europa, a estratégia quanto à chamada comida de avião é simples: é comer o menos possível. Lá se começa pelo pão com manteiguinha, abre-se o prato principal, encosta-se alguma coisa para o lado e come-se o resto, e "vamos embora" à sobremesa. Quando se aterrar, encontra-se um qualquer McDonald's e lá se faz o gosto ao bandulho. Comida de avião, vade retro!
Na China, senti em toda a sua força o que é a relatividade. Andava há 3 semanas a auto-convencer-me das virtudes da comida chinesa mas acho que vou precisar de ajuda. Estava a caminho de Sichuan, onde supostamente vive a melhor cozinha na China. Já não caio nesse "31 de boca".

Porque amanhã não sei o que aí virá, era ver-me a comer aquele pitéu como se fosse a última refeição no Mundo. Survi até o último grão de arroz, pão no molho, lamber os dedos e esperar que haja para repetir. Estava bom? Não, estava maravilhoso...3 estrelas Michelin!

b) Sim, uma mesma definição em Portugal e na China sugere diferentes visualizações mentais.

Dizer "porco" em Portugal significa "porco". Na China significa "imundo". "Barato" em Portugal significa "barato". Na China significa "pechincha". Em Portugal "simpático" significa "simpático". Na China deve querer significar "irritantemente chato". Parece não haver um ponto de contacto entre as definições, o que torna qualquer coisa numa autêntica surpresa.

A minha visualização mental de "porco" mudou. Admito que sim. Vi coisas na China que nem em África vi. O problema mais crónico são as casas-de-banho públicas que encontramos no interior deste país, quando o autocarro pára para uma pausa de 1o minutos, a caminho da próxima aldeia. Uma velhota pede 50cêntimos para podermos utilizar as instalações. Confesso que ainda não percebi para que é utilizado esse dinheiro. Entramos e de repente deparamo-nos com algo de completamente novo. Não existe retrete. Nem sequer um buraco, ao bom estilo turco. Apenas uma vala comum que por baixo das várias "cabines" vai trilhando o seu caminho até ao ponto de águas mais próximo. Chamar-lhes "cabines" é um eufemismo claro. São divisórias de meio metro. Ainda sentado, consigo ver a cara do tipo do lado. Deve ser bom para irmos comentando o jogo do fim-de-semana, mas o meu chinês é insuficiente. À minha frente, onde deveria estar uma porta, está um chinês a lavar as mãos. Sim, não há portas. Não é que as tivessem arrancado, num acto terrorista. Não há mesmo. Não faz parte. Tentei investigar porquê e é aparentemente simples. A cultura chinesa não conhece bem a noção de privacidade. Como é usual na China mais pobre, as famílias vivem em espaços muito pequenos, apinhados de gente, onde ter um quarto e uma casa-de-banho é, na verdade, um luxo. A privacidade não existe. E se não existe, para quê ter portas? Queres, queres! Não queres, vai ao mato, com -5ºC! Havia mais para dizer, mas não consigo descrever o cheiro em palavras.

Surpreendente também é o comportamente dos próprios chineses na camioneta que nos leva. Há pequenos caixotes do lixo, redondos, de plástico, espalhados pelo corredor. Minuto após minuto, bem cá do fundo, uma mucosa estridente sai cá para fora. Pfff, directo para o caixote. Homens e mulheres não há distinções.
Já chega? Calma... Melhor ainda! Se não aguentas até à próxima paragem, é "obrar" para o caixote. Eu vi! Com estes 2 que a terra há-de comer.

c)Sim, a chamada paciência chinesa não tem limites.

Surpreendente mesmo foi o estado em que deixámos um restaurante chinês em Leshan. A culpa foi das horas, porque começámos a jantar ainda não eram 19h. Meteram-me numa sala privada só para nós. Tínhamos conhecido um turco nesse dia, que já anda pela China há uns tempos em trabalho. Andava meio sozinho e resolveu alistar-se na comitiva portuguesa. Parece uma personagem saída dum filme do Indiana Jones. Um tipo porreiro, de boa conversa que alinhou connosco. Começámos a mandar vir cervejas, licores chineses e não podia dar bom resultado. Às 21h estava montada uma autêntica banda: eu na percussão, com garrafas vazias de Tsingtao, fazia batuques na mesa de madeira. Outros com os pauzinhos davam o compasso na panela. Havia os lead singers e os backvocals. Deixámos o restaurante às 24h, num verdadeiro estado de sítio. Comida pelo chão, garrafas partidas, uma mesa caótica, admito que vizinhos sem dormir. Com a simpatia que nos caracteriza, saímos pela porta grande, com um Zai jian e um até à próxima. Mesmo depois daquela barulheira infernal e dos estragos causados, responderam no mesmo tom de simpatia, ou paciência, acredito mais.

Acabámos a noite num karaoke, com mais umas quantas garrafas de cerveja em cima da mesa. O turco, depois de tanto gânbei não se aguentou. Se é festa, é até cair. Enquanto cantávamos os últimos hits chineses, o turco marcava o ritmo, com um ressonar que embora perturbador, demonstrava o seu estado tranquilo. Sei que nunca mais se esqueceu dessa noite. Nos dias que se seguiram andou connosco. Já tinha medo de se juntar a nós para jantar porque não se sabia bem quando o próximo penálti estaria para chegar. Sempre que se falava em cerveja, era ver o homem a transpirar. Mas uma coisa é certa. Sempre disse, até ao final: I've never had a night like this, entre um sorrir sincero e um nervosismo latente.

Partiu em direcção a Kanding, quando nós subimos para Jiuzhaigou. Sempre com a sua garrafa de água, não lhe fosse dar a secura...

quinta-feira, março 01, 2007

李振藩 CAPITULO XVII: volta

Uma semana depois volto a abrir a porta de casa. O fogo de artifício lá fora, que ininterruptamente ecoa da Nanjing Lu, grita as boas vindas.

Entro no quarto e pouso a mochila que durante esta nómada semana foi a minha fiel companheira. Encosto-me na cama e novamente esta vista magnífica toma conta do meu tempo. Tudo está na mesma e isso agrada-me. De repente, batidas estranhas, na tal gaveta onde fechei a cópia pirata para que a asfixia tomasse conta dela. Pelo arfar que se ouve, não dura nem mais 5 minutos. Ligo o cronómetro do relógio, quase em jeito de aposta. "Eu" contra "eu", para ver quem ganha.

Depois desta semana de viagem, e neste preciso momento, há uma imagem que palpita: a dos cadeados que vi num dos primeiros dias, em Leshan. Um após o outro, mais pequenos ou maiores, há os pobres e os "artilhados". Somam milhares que ao longo das infindáveis escadas se prendem, até chegarmos ao Buddha que, lá em cima nos recebe, depois de selarmos a relação com ele.

Num gesto irreflectido, puxo um, aceitando que me poderá dar jeito se a cópia do Photoshop continuar a insistir em respirar quando chegar. Mas o cadeado não se soltou.

Mas a cópia não sobreviveu.