quarta-feira, julho 22, 2009

Diário de Viagem - dia 8

17 de Julho de 2009,

O cheiro a mijo que emana deste colchão não me deixa dormir. Finalmente são cinco e quarenta e cinco e toca o despertador. Depois de um duche de água fria saio a caminho da Mother’s House. Faço o caminho a pé pelo bairro muçulmano onde de um lado e de outro os homens se lavam à beira da estrada com uns baldes improvisados enquanto alguns lojistas vão abrindo as persianas das chafaricas para começarem a vender. Às sete, depois da missa a que os mais devotos e resistentes assistem, abrem-se as portas para o pequeno almoço e sentados em bancos corridos cada um tem direito a uma fatia de pão, a uma banana que desaparece com uma dentada e a um copo de chá com leite. Talvez umas 100 pessoas, na maioria estudantes universitários que aproveitam as férias de verão para fazer isto, viram-se agora para os cartazes que nas paredes brancas desta casa guiam a oração antes da saída.

São sete e meia e a sineta que toca prenuncia a abertura dos portões. Uma das irmãs sobe em cima dum banco para avisar que devido às tumultuosas greves que vão acontencendo por Calcutá - ontem houve algures na cidade um punhado de autocarros a arder como retaliação por uma tal de subida do imposto municipal - os voluntariados que tenham de deslocar-se para longe são aconselhados a não ir dado o perigo iminente. É o meu caso. É certo que não vim para Calcutá para folgas e que para o Senhor um dia de voluntariado cumprido sob tão delicadas condições contará a dobrar. Junto-me a mais dois ou três que pensam assim e seguimos a caminho de Daya Danh. Oito e meia e chegamos finalmente ao destino, depois de 15 minutos de táxi e de mais uns tantos a pé. Junto à porta, de túnica branca com risca azul uma das freiras dá-nos as boas vindas, espantada com o facto de termos resolvido vir. Entro.

Nunca acreditei na sorte, muito menos no azar. Sempre estive certo que cada um trilha o seu caminho e que as coisas acontecem quando queremos muito e fazemos por isso. À minha frente duas cadeiras de rodas onde se torcem dois miúdos paralíticos que vão sendo guiados para um passeio no jardim, enquanto um puto nú foge a coxear, pela sala principal, duma freira que segura uns calções na mão. No canto da sala um outro - vim a saber mais tarde cego, surdo e mudo - que a única coisa que faz é abanar a cabeça pendularmente para a esquerda e para a direita e soltar umas gargalhadas estridentes de quando em vez. Impávidos, sem reacção, três vegetais apertados numas cadeiras improvisadas de madeira olham para a parede e imaginam qualquer coisa que nunca vi. Todos eles, maiores de quatro anos, são “órfãos” de pai e de mãe, deficientes de nascença e abandonados à porta desta instituição com poucos dias de vida. Encontraram aqui a fuga à sentença prematura e uma casa que lhes dá o que vestir, o que comer e os protege do que há lá fora. Há autistas, cegos, surdos e mudos, paralíticos e deficientes mentais. Todos eles têm nome mas destes muito poucos alguma vez serão alguém. Aos doze anos serão mudados para outra casa, depois para outra e finalmente para outra, até que pela última vez ouçam o chiar da cadeira que os prende ao chão ou sintam no ombro a mão que nunca conseguiram ver. Perante tamanha lição de humildade aprendo agora que há muita gente que nunca chega a ter a sorte de não ter de depender do azar.

O primeiro dia aqui foi fértil em sensações. Como poucos voluntários vieram, houve trabalho para 4 horas sem parar. Muita roupa para torcer e para secar no terraço. Desço as escadas e um dos putos vem a correr para mim e estende-me a mão. Assim que a toco não mais a larga. Não fala, pouco anda e só pelos sorrisos que vai esboçando me apercebo que deve estar feliz. Sentamo-nos para ver um filme e imperialmente estende a sua perna em cima da minha para um pouco de conforto até que outra criança, aqui já ao lado, me diz que precisa de ir à casa de banho. Apercebo-me que não anda e levo-o ao colo até lá. Entro no cubículo e sem tocar no chão - as pernas dele fazem um ângulo de quarenta e cinco graus - consigo desajeitadamente tirar-lhe a roupa necessária para que não se molhem os calções. Humildemente pede-me que feche a porta para que ninguém espreite. E pela primeira vez sinto o peso da responsabilidade de ter alguém a depender totalmente de mim. Embora latentemente negativo, o ambiente que se vive em Daya Danh é feliz, descontraído. Os putos fazem a festa, gritam, batem palmas e aventuram-se em todo o tipo de loucuras até que as irmãs o permitam. Embora já passe da hora de saída, fico mais um pouco para terminar de dar de comer a uma das três ou quatro crianças paralíticas que aqui vivem. Meias colheradas de cada vez, ao som do “avião” que me lembro ouvir os meus pais fazerem quando em miúdo não queria comer e a refeição está terminada. Hora de meter a tropa a dormir a sesta e o primeiro dia está terminado.

De regresso à cidade, agora no metro velho de Calcutá, um certo orgulho de ter tomado as decisões que me trouxeram até aqui e a confiança de um primeiro dia de dever cumprido. No meio do fatalismo que embora invisível paira sobre Daya Danh, sei agora que o azar, tal como o vento, sopra mais forte nuns dia do que noutros.

1 comentário:

Anónimo disse...

as experiencias esculpem o carácter e libertam a mente...