terça-feira, setembro 01, 2009

Diário de Viagem - sétima semana

31 de Agosto, sétima semana.

Dia 8 de Agosto marcou o início da segunda metade desta viagem. O dia a dia tranquilo de Calcutá rapidamente se transformou em lutas perdidas contras insónias em combóios apinhados de gente, em caminhadas de mochila às costas dentro das cidades dos Marajás e na dúvida empolgante do meu paradeiro no dia de amanhã. Deixei para trás a estação de combóios revolvida e suja de Barddhawan em direcção a Varanasi - uma das 4 cidades sagradas do hinduísmo. Passei depois por Agra para prestar tributo ao Taj Mahal e terminei a semana em Nova Delhi a jantar no Hard Rock com o Telmo - mais um português em diáspora - e em cativante conversa a fortalecer a minha convicção camusiana de que aqueles a quem falta coragem encontrarão sempre uma filosofia para o justificar. Ainda sem a digestão do único hamburger de vaca comido nestes dois meses feita, embarquei no Rajasthan Express, que me levou pelas paisagens desertas do quadrante noroeste até ao Rajastão, onde em Jaipur, Pushkar, Udaipur, Jodhpur, Kumbalgarh e Ranakpur me iniciei na história do império Moghul e dos Rajás e onde esperei para ver o mais magnífico sol pôr-se nos terraços do forte de areia em Jaisalmer. A três dias de regressar a casa, depois de ter feito uma incursão inesperada pelas terras do Ceilão, encontro agora em Goa, onde a chuva tropical ameaça não parar, algum tempo para terminar o vigésimo livro e arrumar a cabeça depois da mais longa viagem da minha vida.

Guruji.

“The best for last” repete o G.P., enquanto me desvio das bostas que povoam as ruas estreitas de Varanasi. A intenção inicialmente era ficar dois dias mas não querendo resistir à magia do local, arrastei a minha partida. Varanasi é, de todas as cidades sagradas na índia, talvez a mais mística. Aqui vêm terminar os corpos de milhões de hindús que envoltos em panos coloridos e perfumados em sândalo sobem as colinas da cidade para se entregarem às chamas da fogueira que, junto ao Ganges, não param de lavrar. Embora perturbadora, a imagem dos corpos consumidos pelo fogo junto à família que, vestida de branco, está proibida de chorar uma lágrima que seja para que a alma não encontre barreiras à ascenção divina, não deixa de instigar alguma beleza cromática.
Enquanto me vai contando as últimas estórias do irmão viúvo que passa os dias a deambular pelas ruas à espera que a cirrose lhe dite o destino final, continuo fixado na conversa que tivemos ontem. Visitávamos o local onde o Buddha terá dado o seu primeiro sermão e o G.P. (abreviatura para Gajamand Pamdey, o guia de 70 anos que contratei em Varanasi e que facilmente daria uma personagem de banda desenhada) ia fazendo questão em convencer-me que o destino não só existe como é incontornável. Falou-me das três coisas que aparentemente não conseguirei mudar: quando e onde nasço, quando e onde morro, e o lucro ou prejuízo dum negócio próprio. As duas primeiras não tinha eu como argumentar. A terceira, embora facilmente contestável, fica agora no role de boas desculpas para dar num futuro emprego caso as coisas corram mal. Em franca provocação perguntei-lhe: “Imagina que aparecia agora aqui uma cobra a dois metros de ti a bloquear-nos o caminho. O que é que fazias?” Do alto dos seus 70 anos de experiência e imperturbável convicção no destino respondeu: “Continuava a andar”, enquanto apontava para o céu com a mão direita como quem diz “É Ele que decide quanto o meu tempo estiver para chegar”. Foi naquele momento que percebi, com a rapidez com que uma cobra rasteja para mudar de sentido, que tinha encontrado o meu “guruji”. Para os hindús o guruji funciona como o líder espiritual, um homem que embora deste mundo, pela sua sapiência e pela forte ligação espiritual às coisas do além, ganha um estatuto quase sobrenatural.

O slalom por entre as bostas matutinas fica agora dificultado com a mochila às costas mas não fazer um desvio para conhecer o guruji do meu guruji G.P. antes de seguir para Agra parecia-me agora rumar contra o destino. “The best for last” repete freneticamente e pela última vez o G.P., antes de eu subir as escadas e desviar as cortinas que me colocam agora frente a frente com o supremo guruji. É um tipo novo, trinta e muitos, barba e cabelo compridos, a fazer lembrar um ayatollah, com o sorriso provocatório de alguém que sabe que nasceu com um dom e que só com um olhar de segundos nos tira a radiografia completa. Sentado no chão coberto por tapetes, a fumar pachorrentamente um cigarro e a beber um copo de chá perfumado, vai olhando para os quadros que decoram a pequena sala - um Jesus crucificado, um Buddha pensativo de pernas cruzadas e uns quantos Vishnu e Brahma e outras tantas reincarnações - enquanto espera que eu decida que consulta esotérica vou querer pagar. Sempre aleguei que não acredito em previsões astrológicas mas sou cauteloso o suficiente para não negar totalmente à partida uma coisa que desconheço. Optei pela consulta mais básica e barata, umas 1500 rupias, enquanto ele tenta convencer-me a escolher a mais completa, depois de duas raparigas claramente perturbadas com a consulta que tinham terminado há uns minutos terem voltado a entrar na sala para declinarem comprar por umas 10 mil rupias a cura para os problemas que o guruji teria visto no seu caminho. Além da descrença em tudo o que seja esoterismo bacoco também sempre aleguei que a experimentar fazer uma coisas dessas, teria de ser numa altura em que o meu estado de espírito e a minha força interior estivessem num ponto alto e as minhas convicções inabaláveis, porque há coisas que nunca se está preparado para ouvir e outras que ouvindo não saberemos como digerir. Em todo o caso, este parecia-me o momento certo. Foram 20 minutos de intensas revelações que a bem da futurologia e da verdade cósmica sou forçado a resumir. Aqui ficam as palavras do guruji:

• Desde os 26 anos que entrei na melhor fase da minha vida mas a fase de maior felicidade começará aos 30.
• Aos 31 anos terei o meu primeiro filho - neste caso uma filha - e esta será uma fase de crescente sorte na minha vida. Terei 3 filhos no total (filha-filho-filha) o que (atenção o guruji não disse isto) deixará a minha mãe tranquila por saber que em breve terá uma neta.
• Serei milionário aos 35 anos com um negócio próprio, que poderá acontecer nas áreas dos têxteis, da imobiliária ou do import-export.
• Irei casar com uma mulher mais nova, estrangeira e do ramo das artes. Miúdas que não entrem nesta categorização, temos pena, mas estão fora da corrida.
• Vou ter uma vida longa e recheada, até aos 82/83 anos. A avaliar por isto, até lá posso lutar contra cobras e leões e enfrentar todo o tipo de perigos.
• Entre os 39 e os 42 anos tenho de evitar desafios radicais como sejam saltos de paraquedas e carros rápidos.
• Não foram vislumbrados problemas de maior na minha vida (saúde e afins) e os poucos males de que padeço são a dívida que estou a pagar por uma vida anterior em que terei sido meio patife, meio pulha.
• Se não tivesse sido gestor, teria sido professor ou arquitecto, o que a bem da verdade, foram realmente profissões que cheguei a ponderar.

Depois disto, por 5000 rupias foi-me oferecido um colar de pedras que ao que parece me afastaria de todos os males. Mas, como diz o meu guruji, não há nada que eu possa fazer para fugir do destino. A acreditar nisso, dou um abraço ao G.P. na estação suja de Varanasi e penso nas opções que tenho para gastar as 5000 rupias que acabei de poupar. Não foi difícil decidir: vou adiar o meu regresso a casa para início de Setembro e dar um salto ao Sri Lanka.

Ceilão.

As armas e os barões assinalados,
Que da ocidental praia Lusitana,
Por mares nunca de antes navegados,
Passaram ainda além da Taprobana,
Em perigos e guerras esforçados,
Mais do que prometia a força humana,
E entre gente remota edificaram
Novo Reino, que tanto sublimaram.

Estes dois meses de viagem pelo subcontinente indiano foram, em larga medida, um revisitar dos Lusíadas, canto a canto, embrenhado numa aula de história ao vivo e a cores. A máxima de que “sucesso é fiasco atrás de fiasco sem perda de entusiasmo” fez-nos dobrar cabos das tormentas, ser os primeiros a chegar aqui e dominar o Mundo durante algumas décadas. Ler isto nos livros de história cheira a mentira mas ver na primeira pessoa que os Da Silva dominam o negócio dos transportes no Sri Lanka, que há Fonsekas a torto e a direito depois de 500 anos de estarmos no Ceilão e que palavras como “sapato”, “vidro”, “armário” e tantas outras são de uso corrente não deixam margem para dúvidas. Uma roadtrip de 9 dias pela Taprobana (que mais tarde se tornou Ceilão e recentemente Sri Lanka), foi não so viajar por um canto dos Lusíadas como visitar uma ilha que durante 30 anos e até há oito meses atrás esteve em guerra civil e onde ainda não se conseguem conduzir mais do que 50 quilómetros sem um checkpoint para segurança ou tomar banho na praia sem ter um soldado a escoltar-nos de metralhadora em punho, com receio de que haja ainda Tigres Tamil à solta.
Ficou a cargo do Vee Jeh Singhe, nosso condutor de serviço (mais uma personagem de ficção saída de algum filme independente) mostrar-nos o outro lado do país, guiar-nos por Kandy, onde na Guesthouse Lake Bungalow encontrámos mobiliário português, pelo Grand Canyon de Sigaryia, pelas plantações de chá do Ceilão em Nuwara Ellia e Ella, levar-nos a um safari fiasco em Yala e conduzir uma noite inteira até à magnífica praia virgem em Trincomalle, onde repousámos magnânimamente durante três dias e a compensar-nos num safari em Pinawella onde vimos elefantes à séria. Depois de nove intensos dias na estrada ficou a vontade de voltar a um país que recomeça agora do zero mas onde a simpatia é certamente milenar, onde o soldado de metralhadora em punho sorri com a mesma ingenuidade do empregado do hotel, da mulher que manda na padaria e dos posters do presidente, que invadem agora todas as paredes que ainda parecem estar livres.

Setembro, últimos dias.

Regresso agora onde há dois meses começou esta jornada: Bombaim. Por um lado parece que foi ontem, por outro parece que foi há uma eternidade atrás. Foi uma viagem que mudou a minha vida, tal como todas as outras que fiz antes. De forma persistente, quase perturbadora, sinto a necessidade de sistematizar de que forma esta viagem me terá moldado. Mas o que me vem à cabeça não são sistematizações ou grandes revelações. Vejo as escadas do Mondegar e os paquistaneses a desembarcar em Chowpatti Beach antes dos ataques de Novembro, relembro os pobres e os miseráveis de Calcutá, os que esperam a morte no corredor de Kalighat e os putos a correr nos corredores da Daya Danh com a energia de quem não sabe que não há mais lugar nenhum para onde ir. Saboreio o menú do Olypub, o bolo de chocolate do Flurry, a fresca da Kingfisher sentado no páteo do hotel e a caldeirada de peixe que jantei no meu 29º aniversário em Goa. Sinto o cheiro dos combóios apinhados de gente e da comida que religiosamente às oito sai das mochilas das famílias que vão passar a noite a olhar lá para fora enquanto eu luto contra as insónias no beliche lá de cima. Ouço os sotaques do português nas aulas da universidade, as palmas dos milhares em Tarakeswar, os motores dos carros que escoltam o líder da oposição e as metralhadoras silenciosas no Sri Lanka. Relembro as horas que arruinei a discutir por menos de um euro viagens de riquexó, a estação suja de Barddhawan e os yogis que me serviram a comida dos deuses. Repito todas as respostas para as perguntas que tinha antes de vir, todas as novas perguntas que cá descobri e todas as palavras que no Ceilão soam a português. Sonho com a estória do Taj Mahal, com a vista dos terraços de Jaisalmer e com a praia de Trincomalle. Releio todos os livros magníficos que cá comprei, coloco-me na pele do Branson, do Obama, do Bin Laden e do Monge que vendeu o Ferrari. Olho para os cartões de visita das pessoas que aqui conheci, do negociante de automóveis que se tornou Cônsul Honorário, da professora que decidiu começar um curso de português na universidade em Calcutá, do Arindam que me afastou do chão sujo e revolvido da estação de Barddhawan, do G.P. e do Vee Jeh, do cozinheiro americano que conheci no autocarro a caminho de Colombo e que anda à volta do Mundo a trabalhar em restaurantes para aprender a cozinhar tudo o que há para aprender, do australiano que 95% das refeições só come fruta porque acredita que lhe dá paz de espírito ou da melhor amiga da dona da Guesthouse em Kandy, que vim a descobrir é sogra duma portuguesa que vive na Rua República da Bolívia, a 100 metros da minha casa.
Sistematizo tudo isto e o resultado é somente um sorriso do tamanho do Mundo.

domingo, agosto 09, 2009

Diário de Viagem - quarta semana

7 de Agosto, quarta semana.

Santa Unção.

As cartas e as fotografias penduradas na parede não me deixam mentir. Depois de estar há quase um mês em Calcutá resolvi finalmente aparecer. O ambiente é hostil e nos 100 metros quadrados abertos à minha frente, ninguém esboça um sorriso, camas dum lado e de outro encarquilham-se num corredor onde dificilmente passa mais de uma pessoa. Cheira a morte. Estou finalmente em Kalighat, na casa dos que esperam a morte e dos desafortunados, onde em 1955 o Missionaries of Charity da Madre Teresa começou. As cartas do Vaticano e as fotografias com a visita do Papa em 1977 não me deixam mentir. É uma casa sem emoção, parece um filme em pause still. O contraste com Daya Dahn, onde acompanhei miúdos deficientes durante 3 semanas, embora um filme que terá um desfecho semelhante, é evidente: onde lá há cor aqui há paredes frias, onde lá se ouvem gritos de crianças extasiadas aqui ouve-se a tosse dum tuberculoso que se encosta ali no canto. Onde lá há vida em todos os corredores, aqui a vida corre a conta-gotas, como naquele tubo de soro. Era aqui que inicialmente tinha pensado em ser voluntário. Um misto de medo e cobardia impediu-o. Foi um chuto claro para a defesa, para que a estória recente do velhote que morreu nas mãos dum voluntário enquanto lhe dava banho ou do outro que foi à casa de banho e não mais voltou não se repetisse comigo. Mas a verdade é que a curiosidade acabou por me consumir ao ponto de me trazer aqui no meu último dia, para que as pazes com a minha consciência se consagrassem e a missão em que vim recebesse a santa unção.

Longa metragem.

Calcutá fica agora para trás. Depois de quase um mês aqui, definitivo sentimento de missão cumprida. Uma experiência de voluntariado era uma ideia que já vinha a amadurecer há algum tempo e, como já tinha acontecido antes, fui à procura das condições para a colocar em prática. Em um mês não se muda o Mundo mas começa-se a mudá-lo. É um mês difícil de descrever: ver ao vivo e a cores aquilo que estamos habituados apenas a ler ou ver nas notícias, ter mais próxima do que queria a noção de que a vida é um rastilho que se consome ao segundo e que o dia de amanhã só em parte depende de nós, foi bater com a cabeça numa dura parede de fragilidades. Foram quase trinta dias de intensa reflexão, o que foi facilitado pelo facto de esta ter sido uma aventura solitária. E não teria feito sentido ser doutra forma. Ao contrário duma viagem em que é bom ter alguém com quem partilhar o que se vê, esta não era uma experiência ao som de brindes de cerveja, de saídas à noite e de incursões de shopping. É antes um retiro em que é preciso tempo para absorver o que se vê, para se comover à vontade e para re-alinhar realidades e virtualismos. No fundo, uma experiência em que cada um encontra nela um sentido próprio e individualizado. Não tenho planos para o futuro próximo, mas sinto que aqui terminou apenas a primeira parte duma longa metragem em que seguramente há ainda muito por rodar. Embora trivial, a crua verdade é que a grande maioria de nós pensou já em fazer trabalho de voluntariado aqui e ali, mas insistimos em desculparmo-nos com as inconvenientes circunstâncias da vida para o adiarmos, usando de quando em vez um pouco de caridade para serenar as angústias que nos consomem quando vemos um pobre ou um deficiente na rua ou usando a oração da noite para pedir-Lhe que acorra em seu auxílio. Tal como a matemática, geografia ou história, a disciplina de voluntariado, num sistema escolar progressivo, deveria ser obrigatória. Nem tanto pelo contributo social mas antes pela destruição dos ambientes assépticos e alienados da realidade, em que nos habituámos a viver.

Calcutá, posso dizê-lo agora, é a minha terceira casa, depois de Lisboa e Shanghai. Houve tempo para tudo, para fazer bons amigos, assistir a concertos de Serod e ainda a palestras com laureados Nobel, comer excelente comida e por as leituras em dia. Fica a promessa de um dia regressar. E a realização de que, pelo menos durante um mês, não levei um vida estúpida e inconsequente.

A cor dos Deuses.

“Who am I?...Who am I?... Who am I?...” eram os únicos sopros que ía ententendo no meio daquele emaranhado de Bengali, enquanto com as duas mãos segurava a folha seca de onde ia tirando os pedaços de Prasad e olhava para ele, com a reverência com que se olha para alguém importante.

5 horas da tarde e entro no combóio que liga Santi Niketan a Barddhawan. São 50 minutos de viagem e 5 horas que me esperam na estação até que às 22h chegue o combóio que em 12 horas me levará a Varanasi. Tinha ido a Santi Niketan ver a universidade - uma das mais vanguardistas de todo o Mundo - e encontrar-me com o Dr. Amrati Sen, respeitado professor do Departamento de Inglês e de quem tinha a referência. Depois de bater a quase todas as portas da vila finalmente encontrei a sua mas parece que tinha ido a Darjeeling para um seminário. Deslocação em vão, pensei eu, enquanto olho por cima dos ombros dos tipos que estão à minha frente e procuro um lugar no combóio para me sentar. Andar num combóio na Índia é uma experiência surreal e tentar encontrar um lugar vago mais surreal ainda. Acabo por colocar as duas mochilas que trago encostadas ao corredor de entrada e a pensar em como disfrutar dos 50 minutos que se aproximam. “Não fales com ninguém, não aceites comida de ninguém” são os conselhos que trago dos amigos de Calcutá e ao que parece a forma segura de evitar roubos desnecessários por envenenamento. Claramente contradições em que se envolve a espiritualidade extrema deste povo, mas dada a densidade do tópico, não me apetece reflectir. Esta vinda a Shanti Niketan tinha sido em toda a extensão um erro, mais não fosse pelas cinco horas que ia ter de esperar na estação em Barddhawan. Ainda a factualidade crua do conselho me passeava pela cabeça quando alguém me toca no ombro. “Fazeres a viagem aqui não vai ser muito confortável. Tenho algum espaço ali junto ao meu banco, podes trazer as mochilas e colocá-las lá. Acompanha-me”, disse-me o estranho. Ao princípio neguei, alarmado pela temporalidade pertinente do conselho, mas perante a insistência cedi. Lá pus as malas em cima dum banco meio desocupado, negando o convite a sentar-me para assegurar a defesa do meu capital. O tipo, diria duns 25 anos, inglês impecável - o que começa a ser raro nesta zona - tinha uma conversa simpática. Depois das apresentações feitas, de me dizer que era de Barddhawan e que estava ali com o pai (um velhote com ar tenso sentado à minha frente) de regresso a casa, ainda tentou oferecer-me comida, oferta que simpatica e exaustivamente declinei. Exceptuando a figura do pai, todo o enredo ia batendo certo com o dum eventual envenenamento premeditado e fui jogando na defesa. Mas na verdade, à medida que o tempo foi passando e a conversa ia fluindo, e fruto de uma alguma ingenuidade minha que creio agora nunca desaparecerá e duma incapacidade crónica de chutar o risco à primeira em troca de uma boa estória, fui relaxando. A viagem terminou com o convite para durante as cinco horas que tinha o acompanhar a uma viagem rápida de reconhecimento à sua cidade. Esta vinda a Shanti Niketan teria sido em toda a extensão negligenciável, não tivesse eu cedido.

O peso excessivo das malas que trazia não iria tornar o percurso fácil e pergunto-lhe se há algum sítio onde as deixar. Depois de um telefonema rápido diz-me que vamos a casa dum amigo e que lá posso deixar a bagagem. Meia hora de riquexó e chegamos finalmente. À porta recebe-nos o amigo - um tipo imberbe mas com ar “sabido” - que acompanhado pelo irmão nos escolta até ao segundo andar da casa. Umas escadas sombrias, mal construídas, levam-me a um corredor escuro com paredes por pintar e ao longe finalmente um quarto a meia-luz. Aproximo-me e vejo ao fundo vultos em movimento. Ele pede-me que entre no quarto para deixar as malas e assim fiz. Lá dentro, sentados em cima duma cama, conto sete pessoas que me dão as boas vindas à boa maneira indiana, com as duas mãos juntas, juntas ao peito, em forma de reza. O pai, um velhote que me faz lembrar o Ghandi, olha pela janela, observando aquilo que parece ser o movimento ordeiro de regresso a casa no final do dia enquanto a mãe, a tia, a irmã e os três irmãos assistem à novela. Apressam-se rapidamente a convidar-me para sentar, enquanto servem um sandesh e um copo de tchai (chá com leite e especiarias). A casa é modesta mas a hospitalidade que dali emana rapidamente a transformou num potencial hotel de luxo. Estão interessados em saber o que um português faz por ali, como nos conhecemos, e sendo amigo dum amigo da casa, rapidamente tenho o irmão mais novo a querer tirar fotografias, a tia a oferecer mais chá e a irmã mais nova que entretanto espreita pela fresta da porta para ver quem é o desconhecido. Termino o meu chá e juntamente com o meu amigo de circunstância lá descemos para a caminhada de final de tarde.

Foi essencialmente uma espectacular excursão aos principais templos de Barddhawan: vi o Rama, o Krishnha, o Hanuman (Deus Macaco), o Vishna, o Maasarbamangala, fui iniciado nos rituais da água sagrada e da pinta na cabeça, do ajoelhar no chão, do bater com a cabeça e de pedir um desejo, fui abençoado pelos sacerdotes e feiticeiros. Templos em antigos palácios, estátuas de todas as cores, dourados, azuis, rosas e laranjas que se espalham por um espaço místico e que me fazem agora acreditar que a religião não é afinal uma coisa de pessoas sisudas e de sermões, de beatas de preto e branco ou de fundamentalistas de missa domingueira que na segunda feira já esqueceram o que o padre pregou no dia anterior. Tento absorver o mais que posso, faço perguntas e tento dar as respostas mas no meio de tudo isto ainda não consigo compreender a razão de estar aqui. Na visão ocidentalizada do Mundo em que crescemos, embora não seja algo de que me orgulhe, procuro na cabeça dele o motivo explícito para me estar a acompanhar com toda aquela satisfação. Não é que eu ache que não merecesse este tratamento (aliás, não tinha feito nada até ali para o desmerecer) mas meia dúzia de indicações na estação com um mapa seriam suficientes para orientar um estrangeiro em Barddhawan. Creio que teria sido isso que eu teria feito. Com o mesmo espírito que aceitei o convite dirigi, assumindo em pleno o risco, a pergunta: “Tenho de te agradecer a magnífica hospitalidade, transformaste uma tarde perdida na estação num roteiro espiritual magnífico. Mas daquilo que percebi o teu pai queria-te em casa cedo, tás sem trabalho, conheceste-me faz um par de horas mas, no entanto, aqui continuas como se fôssemos melhores amigos da escola ou alguém a quem deves um favor. Posso perguntar-te porquê?”.
A forma seca e desprovida de sentimento com que a coloquei fê-lo parar de andar, bem no meio da estrada. Mas rapidamente, como se a secura fosse agora uma forma de competição, respondeu: “Vocês ocidentais têm dificuldade em perceber a espiritualidade. Nós hindús veneramos 36 mil deuses e um deles é a alma, a tua, a daquele vendedor, a do professor que cumprimentei há pouco. Ao estar a acompanhar-te estou a prestar tributo aos Deuses. A cor, o país, a religião da pessoa não importa. Se eu fizer o bem, receberei o bem, e isso é suficiente para mim”. Embora em vias de extinção, esta visão inclusiva, ingénua e espiritual do Mundo tem aqui um seguidor. No meio da merda em que todos os dias nos atolamos, da corrupção dos vizinhos, da decadência dos sentimentos e das relações falsificadas, da cor do dinheiro, da idolatria, da fisicalidade do espírito e da futilidade da vida, aqui em Barddhawan, cidade que nem tem lugar nos guias mas onde há uma suja estação de comboio, aprendi mais uma lição de pura e simples humildade.

O sol já há vários quinze minutos desceu atrás do Hindu Gourjamath. Entramos agora pelos portões, eu meio atordoado a tentar encontrar a sala donde vêm a voz do guru, ele a cumprimentar um yogi, amigo de infância. Encontro finalmente a ante-câmara onde muita gente, sentada no chão de perna cruzada, ouve os ensinamentos do Swami Chinmayananda - aquele que aprendeu tudo, os dentros e foras da mente - sobre o bem e sobre o mal. Do alto da sua barba e cabelo compridos e da sua túnica laranja, emana a sabedoria secular de quem demorou 21 anos a decorar as sagradas escrituras. Depois de sentados cinco minutos a ouvir levantamo-nos, com a discrição que me é possível sendo o único estrangeiro na sala e, até ver, na cidade. O relógio badalou imaginariamente as oito horas quando o Arindam me puxa para dentro da entrada da casa onde vivem todos os yogis, homens que em nome da sua religião, se despiram de todos os bens materias e prazeres terrenos para se dedicarem solenamente ao serviço dos deuses e da comunidade. Servem os pobres, os doentes e os oprimidos. Os dias, quando não de trabalho comunitário, são de meditação, para que a paz interior fortaleça a sua convicção. Aos mais novos cabe-lhes a árdua tarefa de ir mendigar para a rua, não com o objectivo de obterem receitas, mas simplesmente de experienciarem a crua rejeição dum pobre e deixarem para trás e para sempre o seu leviano ego.

Depois de um discurso de dez minutos e concluída a tradução, finalmente entendo. Enquanto seguro com as duas mãos a folha seca que contém a comida dos deuses, olho para ele com a reverência de quem olha para alguém importante, e percebo agora que o que levou o homem que está mesmo à minha frente a tornar-se yogi foi o mesmo role de perguntas metafísicas que todos nós, cada um no seu tempo e com a sua profundidade, se coloca. “Who am I ?”. Serei eu o espírito ou o corpo emprestado que o carrega e que observo de manhã ao espelho? De onde venho e para onde vou? Estamos nós destinados a nascer, crescer e morrer ou pode a nossa passagem perpetuar-se em alguma coisa? O Swami Chinmayananda encontrou aqui as respostas para as suas perguntas. Ao meu lado senta-se aquele que de circunstancial passa agora a amigo - Arindam Pal - e que venho a saber que só por força do pai - que vê no filho único o sustento da família - não chegou ao final do caminho para se tornar um yogi e para também ele poder debaixo deste mesmo tecto encontrar as respostas às perguntas que o inquietam.

A tarde vai longa. Regresso para ir buscar as malas, para mais um chá e uns bolos secos, para uma sessão de fotos e de perguntas e para um adeus sentido do irmão mais novo, que corre agora à janela para ver o riquexó sair e não mais voltar. Tudo levaria a pensar que estaria agora sentado no chão sujo da estação à espera do comboio e a lamentar a minha ida ostensiva a Santi Niketan, mas não. Quis a negação da teoria do envenenamento premeditado, a crença impregnada dos 36 mil deuses e o corredor sombrio onde deixei a mala que o chão da estação continuasse sujo e revolvido. Eu e o Arindam terminamos o início da noite à mesa dum restaurante, no andar de cima do hotel da rua principal, a tentar responder a algumas perguntas que só alguém que não renunciou a todos os prazeres terrenos continua a perguntar. Bem de cima do meu ego tiro quatro notas da carteira e de forma crua sacudo-as em cima da conta que acabaram de trazer. Em Barddhawan, quis eu que a cor do dinheiro fosse ao final do dia legimitada na retribuição do bem.

sábado, agosto 01, 2009

Diário de Viagem - terceira semana

31 de Julho, terceira semana.

Gourmet.

Sou maluco por comida. Já o sabia há muito tempo mas nada como uma nova amostra para o reconfirmar. Medicamente falando o diagnóstico não será fácil pela multiplicidade de sintomas mas arrisco-me a entrar em território que não domino e dizer que sou uma forma de hiperactivo gastronómico, um crónico do chocolate, um tetraplégico das jantaradas, um maníaco-depressivo dos cozinhados da mãe e um epiléptico das coisas boas. Depois de mais de dois anos de sofrimento na China - onde cada refeição é para mim um sacrifício e onde cheguei a pensar que estava para sempre curado - voltei na Índia a sentir delírios gastronómicos e a reafirmar a minha convicta loucura. Voltei a pensar em comida mais de vinte vezes por dia, a decidir à hora de almoço o que me apetece comer ao jantar, a perder mais de meia-hora a decidir a que restaurante vou, a dar gorgetas ao cozinheiro e a dormir por quatro euros para poder financiar almoços e jantares a dez. Seja especialidades de Goa, do Rajastão ou de Bengala, seja Tikka, Massala ou Tandoori, demore uma hora a cozinhar ou me custe os olhos da cara, o importante é que seja em quantidade generosa e esteja apurado de tempero.
Andar pelas ruas de Calcutá é um convite explícito a espasmos gastronómicos: as cores do açafrão e da lima pendurada nos carros dos vendedores ambulantes, o basmati a retintar na panela, o cheiro do caril de côco, os bolos a fritar, o naan a sair do forno e o tipo que insistentemente convida a sentar. Na recta final da minha estadia em Calcutá e ainda antes de partir sinto já falta da comida pujante do Rajastão no Peter Cat, das especialidades vegetarianas do Teej, da galinha e da comida sino-indiana do B-B-Q, dos bolos de chocolate do Flurry, do caril do 6 Balligunge Place (onde vim a descobrir que uma das especialidades locais é um peixe que dá pelo nome de Rui e onde sempre que lá vou o viciante gelado de cajú com bolacha é por conta da casa) e do cantinho do Olypub que reconfirma a teoria universal de que quanto mais tasca menos rasca.
Sou maluco por comida. Medicamente falando o diagnóstico não será fácil pela multiplicidade de sintomas mas arrisco-me a entrar em território que não domino e a dizer que não tem cura.

Javadpur University.

Tudo tem um início. A Patrícia apresentou-me virtualmente ao Dr. Freitas Ferraz que me pôs em contacto com o Embaixador de Portugal em Nova Delhi, que me encaminhou para o Mr. Ravi Poddar, que por intermédio do Anup me fez chegar à Obra da Madre Teresa. Simultaneamente, através do ciber-espaço e noutro escadear de contactos informais, cheguei ao contacto com a Sandra (que não conheço nem nunca vi) que me cedeu o contacto da Rita, que por sua vez é amiga de longa data do Anup. Viajar não é mais do que um encruzilhado de surpresas e aqui estou eu em Javadpur University, convidado pela Rita - local de passaporte mas apaixonada por Portugal, onde estudou e viveu - para vir conhecer uma das suas turmas de português e para contribuir com aquilo que a minha experiência lusófona me deixar. Encontrar em Calcutá alunas de português de Portugal foi para mim uma surpresa em toda a linha, e mais surpreendente ainda foi ouvi-las falar de Fado, da Amália e da Marisa, dos Lusíadas que leram em versão traduzida, da saudade e do desenrascanso, da bica, do pastel de nata e da RTP, do Cavaco e do Álvaro Cunhal, com um entusiasmo e um romantismo que contagia, e com a esperança de conhecerem um dia o mesmo país donde há 500 anos saiu o Vasco da Gama. Viajar não é mais do que um entrelaçado de surpresas e aqui estou eu em Javadpur University a saber que se está a trabalhar num projecto para em 2012 se abrir um restaurante português em Calcutá, ao mesmo tempo que em cima da mesa descansa o CD de fados cantado e gravado pelas próprias e que gentilmente me ofereceram.

Viajar não é mais do que um emaranhado de supresas e aqui estou eu a descer as escadas de Javadpur University e a constatar que o Português não é só dos portugueses, é também das turmas de Calcutá e do resto do mundo, das praias de Goa, do nome de Bombaim, do Mr. Ravi e do Anup, lá em baixo do Sri Lanka, dos casinos de Macau, das fortalezas de África e do Cabo da Boa Esperança, dos fiipinos que enterraram o Fernão de Magalhães, das Caraíbas e do Samba do Brasil. É ainda dos “kopos” e dos “hirumanos” no Japão, do pastel de nata na China e dos Sequeira, dos da Silva e dos Fernandes do Industão. E, porque não, de todos aqueles de cuja língua se vê o mar.

Leituras.

Além do recorde pessoal de mais fatias de bolo de chocolate numa semana que foi batido há uns dias, preparo-me também para bater o recorde pessoal de livros lidos em 7 dias: nada mais nada menos que quatro. O tempo disponível e o ambiente propiciam o feito. Tentei aliar a qualidade à quantidade e comprar títulos que façam sentido neste tempo e neste espaço. Comecei com O banqueiro dos pobres, um livro sobre o micro-crédito iniciado pelo Banco Grameen na pessoa de Muhammad Yunus (Prémio Nobel da Paz) e que aqui já ao lado, no Bangladesh, tirou da pobreza milhões de pessoas, lutando contra fortes barreiras culturais e religiosas. Tudo começou com um empréstimo de 22 cêntimos a uma mulher que por conta doutrém produzia cestas de bambú e que com este apoio se tornou micro-empresária. Parte da estória passa-se em Calcutá o que lhe confere uma mística particular mas acima de tudo é um exemplo inspirador que deixa a certeza de que a pobreza pode ser irradicada do planeta, sem recurso à caridade. Assim haja vontade. Seguiu-se o Business Stripped Bare do Richard Branson, fundador da Virgin, e que é uma mistura de auto-biografia com lições de vida e estórias mirambulantes daquele que para mim é o maior gurú do empreendedorismo, que começou a vender CDs aos 19 anos e que aos 60 se prepara para colocar em órbita a primeira nave espacial tripulada. Um magnífico livro, a reler, e que numa altura em que estou desempregado me faz pensar se o passo certo é continuar a trabalhar para encher os bolsos a terceiros que já os têm a transbordar ou se a decisão correcta não seria começar a encher os meus. Nas entrelinhas é também um reafirmar de que viver significa assumir riscos e cometer loucuras porque “the brave may not live forever but the cautious do not live at all”. Há dois dias comecei o Hug your people, um daqueles livros de gestão bem americanos sobre como criar uma equipa vencedora, baseado em técnicas de motivação e inspiração. É um livro de mesa de cabeceira mas em todo o caso ajuda a distinguir um mau dum bom ambiente de trabalho. Agora a meio vai o Inside Al-Qaeda, um livro escrito por um investigador que teve contacto directo com centenas de membros da organização e que neste livro deixa a nú a essência de Bin Laden e todas as tácticas e estratégias desta que é apelidada a Rede Global do Terror. Estando na Índia, entrincheirado entre dois países que albergam células terroristas (Paquistão e Bangladesh) pareceu-me um bom livro para adormecer.

segunda-feira, julho 27, 2009

Diário de Viagem - dia 17

26 de Julho, dia 17.

7 e 45 da manhã e toca o telefone. É o sobrinho do Mr. Ravi a adiar para as 10h30 o que estava previsto acontecer às 9h30. Não foi propriamente mais uma hora de sono porque preferi apostar no english breakfast do Flurry’s ali em Park Street. Tornei-me na última semana um habitué do local que é aqui em Calcutá (cidade conhecida também pela boa doçaria) um local sagrado para os crentes na religião da chocolateria de bom nível. É o meu caso, levo o ritual a sério e, qual extremista, depois do almoço passo lá sempre para fazer assentar o repasto e digerir um livro. Segui dali para o Bengal Taj Hotel, onde me tinham pedido que esperasse pelo Mr. Ravi. Cheguei um pouco mais cedo e na hora prevista compareceu o anfitrião da visita que se ia seguir, acompanhado do sobrinho e de, presumo eu agora, um amigo dele.

‘Rui, bom dia, que tal Calcutá depois de uma semana? E o trabalho corre bem?’, pergunta-me ele.
‘Até agora não podia estar a correr melhor, depois de um ou dois dias de habituação, já me sinto em casa’, digo-lhe eu. Em tom de brincadeira lá me diz que muitas das pessoas deslocalizadas pela empresa para cá se sentem azaradas no início mas acabam por não querer voltar. ‘Há qualquer coisa especial nesta cidade de facto’, leva-me a concordar. Nisto chega um jeep da polícia e outro à civil. ‘Vamos’, diz o Mr. Ravi. ‘O meu amigo chegou!’. Já sabia ao que ía, só desconhecia a amplitude do arranjo. Sai do carro um homem nos seus sessentas, bem vestido - com uma túnica azul, calça branca e sandália distinta -, cabelo puxado para trás e óculos demodé. Tinha acabado de ser apresentado ao líder da oposição de Calcutá, que ao que parece anda em conversações com o congresso local para uma aliança que destrone a já antiga maioria comunista. Apressou-se a entrar no carro e eu, juntamente com o sobrinho e o amigo entrámos num Toyota branco, impecavelmente limpo, com ar condicionado - luxo que ainda não tinha sentido em Calcutá - e um Alpine que pelas colunas de trás explodia um beat cool, bem indiano. À frente o motorista.

A viagem que normalmente demoraria 2 horas, levou-nos apenas 1 hora a percorrer. Os limites de velocidade foram escrupulosamente cumpridos mas o facto de termos um carro batedor da polícia a escoltar-nos - dada a personalidade que ali ía - tornou as coisas bem mais rápidas. Íamos a caminho de Tarakeswar, local sagrado dedicado ao Deus Shiva e onde todos os ‘mês 5’ do calendário hindú (o mês de Julho para nós) de cada ano, milhares de fiéis de todas as proveniências aqui vêm para prestar divino tributo. O rito é simples: cada fiel transporta aos ombros dois potes cheios de água proveniente do Ganges (o rio sagrado para os hindús, que nasce nos Himalaias), cada um deles preso às extremidades de uma cana de bambú e decorado com panos coloridos, flores e todo o tipo de ornamentos que se possa imaginar. Vão em direcção a Tarakeswar, local onde está o templo e onde deverá ser vertida a água. Em procissão vai também um cortejo alegórico com figuras de deuses que, embora longe dos 36 mil existentes para os hindús (há inclusivamente um Deus dos livros, porque como faz questão de clarificar o Rishabh e eu concordo, faz todo o sentido que o conhecimento seja deificado) é suficiente para fazer parecer isto um desfile de carnaval. São milhares de pessoas que vamos encontrando ao longo destes 80 km que estamos a percorrer, entremeados por estações onde se pode parar para refrescar e descansar. É um festival de cor impressionante, e uma espiritualidade que contagia. Há velhos, novos, ricos e pobres, descalços, doentes, deficientes, mas nestas diferenças reforça-se a união. Distante da penitência e do sofrimento patentes na peregrinação a Fátima, esta festa inspira em mim um tipo de sentimento muito diferente.

Chegamos finalmente, não ao templo como eu contava, mas a uma das grandes estações de paragem, da qual o Mr. Ravi é o presidente e, julgo eu, o mecenas. É um local inexplicável: milhares de pessoas, deitadas no chão e onde abrigadas do sol dormem o que podem, outras esperam junto à porta do refeitório onde lhes será servido gratuitamente a refeição do meio dia (e onde mais tarde, para delírio da multidão, me juntei de pernas cruzadas em cima do muro de cimento para com as mãos partilhar o mesmo almoço), algumas vertem copos de água uns atrás dos outros e salpicam os amigos, vendedores ambulantes, polícia à mistura, caminhos elameados, dois templos (onde houve ainda tempo para ser abençoado pelo “feiticeiro” de serviço), uma voz insistente que dum microfone longínquo faz ecoar nas colunas espalhadas pelo local as orações do momento e uma comitiva presumo eu de colonáveis que, junto ao Mr. Ravi nos guiam pelo recinto. Estava a achar estranho a cerimonialidade com que me tratavam (embora um convidado e único estrangeiro ali, estava a achar demasiado cerimonioso), enviando-me sempre para a linha da frente da comitiva, dando-me os melhores lugares para me sentar, apresentando-me a todos os distintos convidados. Tudo se clarificou no entanto no segundo exacto em que ouço o meu nome soar nas colunas (atravancado no meio de palavras indecifráveis das quais percebi ‘Portugal’) e vejo uma das personalidades movimentar-se até mim para, com uma vénia e com um juntar de mãos, inesperadamente e de forma gentil me medalhar com um colar de pérolas e flores. Não mais o tirei. Era agora claro não só para mim como para os milhares de pessoas que ali estavam que, juntamente com o outro tipo que por acaso era o líder da oposição, aquele mal amanhado português de barba por fazer, t-shirt branca e calças de pano era o convidado de honra. Mais não pararam de soar as palmas por onde quer que eu passasse, gesto a que eu sempre que possível (e incentivado pelo Mr. Ravi) respondia com um sorriso sincero e com um aceno de mão. Foi certamente o mais próximo que estive de me sentir uma rockstar, pelo que esta viagem além de tudo o mais encerra também o meu direito legítimo aos cinco minutos de fama a que todos, estou a crer, temos um dia direito.

São 3 da tarde e depois das despedidas regressamos a Calcutá. O ar condicionado que está agora no máximo ajuda a refrear a legítima excitação que este final de manhã e príncipio de tarde me proporcionou, enquanto lá fora os peregrinos, em sentido contrário e ainda longe da próxima estação, fatigados pela carga mas inabaláveis na crença, aguardam já pela sombra que mais adiante irão encontrar. Para mim seguramente transcendente, esta sucessão (quase perfeita) de escolhas fortuitas, de ligações, de sentimentos e de locais, de conhecidos e desconhecidos e de segundos que não poderiam ter sido outros, vai rastilhando esta sucessão de acontecimentos incríveis e de estórias para contar com que este país decidiu presentear-me.

Diário de Viagem - semana 2

25 de Julho, segunda semana.

Calcutá, a cidade onde o tempo parou.

Fez terça-feira uma semana que aterrei em Calcutá. Depois do abalo inicial de chegar a uma cidade que parece que parou no tempo e que duvido alguma vez vá avançar, onde se dorme na rua apesar de os hotéis estarem a meia dúzia de tostões, onde homens puxam carroças mas há metro, onde se come com as mão porque sabe melhor e onde crianças morrem por não as lavarem, onde as vacas são sagradas e entopem o trânsito, onde todas as cores são possíveis, onde cheira a cozinhados da mãe em todas as esquinas, onde se esconde o Vasco da Gama, onde se toma banho na rua, onde o povo é sujo mas bonito, onde muçulmanos, cristãos, budistas, hindus e ateus vivem em paz e onde o partido comunista manda, onde há lixo que nunca mais acaba e não há onde por o lixo, onde abanar a cabeça para a esquerda e para a direita significa “sim” e “não”, onde se come por um euro e muita gente morre sem alimento e onde se discute filosofia na rua, sinto-me quase em casa. Há cidades que nasceram para ser degradadas, degradantes e paradoxais, mas é exactamente esse traço que lhes transmite o carisma e a imperfeição de onde advém toda esta energia.

O poder da mente.

Calcutá será eternamente a cidade onde me iniciei na meditação. O Gautam convidou-me para uma sessão domingueira lá para “trás do sol posto” e, empolgado, lá me juntei. Já há três anos que ele, todos os domingos, religiosamente lá vai. Diz-me que se sente outro agora, com uma paz de espírito transcendental. Já fez um ou dois cursos de introdução à cura prânica, também conhecida como ayurvédica, que resumindo e baralhando significa curar doenças através da meditação, sem qualquer recurso ao toque ou a medicação. Diz que agora consegue curar gripes com duas meias horas de meditação. Embora tendencialmente céptico na filosofia transcendental, sou um convicto no poder da mente e por certo este treino levará a qualquer lado. A primeira experiência para mim, tenho de admitir, foi um tanto ou quanto desmotivante. Foi meia hora com os olhos fechados onde me pediram que tentasse imaginar o planeta Terra a rodar à minha frente e que o agarasse com as mãos, que visionasse ora a chama do meu coração ora uma coroa em cima da minha cabeça ao mesmo tempo que inspirava e expirava de seis em seis segundos e entoava um “ohhhmmmmm” prolongado. Nos entretantos a voz do mestre, ao som duma musiquinha étnica, ia-nos dando instruções. Quando abri os olhos, meio ensonado, sem ver coração nem coroa, e ainda só a vislumbrar a ponta esquerda do pólo norte e a figura do Ramakrishna à minha frente, reparei em meia dúzia de tipos que claramente se teriam transcendido, tal era o esbugalhado dos olhos e a cara extasiada dos meninos. Ao ver este cenário, a única coisa que me deixou mais tranquilo foi saber que a meditação é um processo de aprendizagem longo, que pode levar anos. Ao atingir-se esse nível - ao qual só se chega quando conseguimos por a mente a pensar em nada, ficando totalmente vazia - entra-se num estado de tranquilidade superior ao do sono, conseguindo-se a superação mental a que chamo transcendência. Meia hora disto, de manhã e à noite corresponde grosso modo a quatro horas de sono, a uma vida mais saudável, a um sistema imunitário de leão e a uma tranquilidade que, daquilo que vi, move planetas.


Bauddha Dharmankur Sabha.

Não vim em busca espiritual à Índia, confesso. Mas entendo porque haja quem o faça. É impossível ir onde quer que seja sem que um gesto de religiosidade se manifeste. Cânticos que ecoam das mesquitas ao final da tarde, velhotes que se benzem no rio, mulheres de pinta na testa, missionários católicos, monges budistas, empregados de restaurante que levam a mão à boca e à testa quando uma moeda cai no chão. Depois de meia dúzia de dias a pagar muito por um quarto manhoso e um colchão a cheirar a mijo, a financiar agiotas e a enriquecer empresários que pouco sabem sobre serviço ao cliente, deixei que a espiritualidade própria da cidade me invadisse e optei por me mudar para um sítio onde sabia que não seria aldrabado, onde posso deixar a porta destrancada e onde o buzinar de Sudder Street e a legião estrangeira ficam longe - para o Bauddha Dharmankur Sabha, a Associação Budista cá do sítio. Aluguei um quarto no primeiro andar a quatro euros por noite, com vista para a gigante estátua do Buddha que está lá em baixo, onde sou cumprimentado por monges à entrada e à saída e onde acordo às cinco e meia da manhã com cânticos no terraço. São instalações comedidas e humildes mas limpas, onde o ambiente é tranquilo e místico, escondidas num bairro castiço, propícias à introspecção.

AD-HD.

Fez hoje (sexta-feira) uma semana desde que comecei a trabalhar como voluntário para o Missionaries of Charity, missão fundada pela Madre Teresa na década de 50. O trabalho que tem sido feito ao longo dos anos é, honra lhe seja feita, impressionante: compaixão e dignidade são hoje palavras de uso corrente não só em Calcutá como noutras cidades onde a missão se instalou. Muitas mulheres fizeram o voto de castidade, deixaram tudo para trás e dedicam a sua vida a cuidar dos pobres, dos doentes e dos moribundos, porque também estes são filhos de Deus. Como excelente fenómeno de marketing que a Ordem da Madre Teresa se tornou ao longo dos anos, a oferta de voluntários excede claramente a procura - aliás, todos os centros foram planeados por forma a que as pessoas contratadas que lá trabalham sejam suficientes para garantir o seu funcionamente em pleno - o que leva a que o isto seja visto como um privilégio para o voluntário - alguns em busca de uma linha bonita no currículo que lhes dará o primeiro emprego quando regressaram e casa - mais do que para a Ordem. Intenções à parte, nesta semana lavei, sequei e recolhi mais roupa que em toda a minha vida, aprendi a dar de comer a putos que fazem birra (e com razão!) porque andam há um ano a comer o mesmo arroz com vegetais ao almoço e ao jantar, ajudei a vestir mais crianças do que a maioria das pessoas que conheço, limpei mais cús do que gostaria, mudei umas mil camas de lavado como se fosse faxineira de hotel e pús miúdos a dormir com a insistência com que tentava terminar os jogos de computador quando era pequeno. Faço tudo aquilo que sentado numa cadeira de escritório nunca teria tido oportunidade de fazer, sinto mais do que nunca que trabalho e giro lucro para quem dele precisa, sinto-me recompensado por isso e durmo bem. Esta semana foi também a semana em que concluí que as teorias económicas do Adam Smith e os modelos econométricos que se ensinam na escola não se aplicam, onde a realidade vive longe dos mapas de Excel e das apresentações idiotas de Powerpoint, alienada das palhaçadas do management, do variable pay, dos fringe benefits ou da fofoca dos corredores. Onde o mundo real, onde vive a maioria, é o da espera cruel pelo dia de amanhã e não o do subprime, do credit crunch ou da morte do King of Pop. Onde as pessoas não esperam pelo episódio da novela de amanhã, pelo replay do pontapé do Marco do Big Brother ou do coleccionável que sai com a próxima Caras. Onde os putos não estão à espera do último filme da Disney, a chamar nomes à empregada da escola ou a recarregar a PSP.

Attention Deficit - Hiperactivity Disorder, vulgo hiper-actividade, é a vertente em que me tenho vindo a especializar. A alguns dos voluntários foi designada uma criança para acompanharem durante o dia, particularmente na altura do estudo, onde os mais espeditos aprendem a ler, escrever e alguns dotes artísticos, como seja o tocar um instrumento ou aprender a desenhar. A madre superior deve ter lido na minha cara que eu vinha à procura de trabalho e deu-me a “custódia” do Ankur, O HIPERACTIVO. Qual guerreiro mongol, o filho da mãe - não deve ter mais de 8 anos - não pára 5 segundos quieto: ora manda pontapés em qualquer coisa que mexe, ora desata a correr, ora mete cola à boca, ora começa a chorar, ora desaparece, ora liga a mangueira e começa a molhar toda a gente, ora não dorme quando tem de dormir ora mija em qualquer canto. E o mais impressionante (o tipo é rápido) faz tudo isto em menos de dez minutos. Porque nada é servido de bandeja, sofre de deficiência - auditiva e mental - e ainda de epilepsia. O dia começa para ele às 9 horas como uma sessão de meditação (meditação, era bom era...), onde numa sala escura se ouvem umas músicas de luz apagada e segue-se meia hora de estudo. Veja-se bem o calibre do menino, construiram uma espécie de cela prisional onde me fecho com ele para lhe dar aula. Escusado será dizer que a bem da segurança apenas inclui uma cadeira e aí uns 4 metros quadrados para não dar azo a grandes ideias. Contra todas as expectativas, têm sido trinta minutos abençoados e ainda não causou distúrbios de maior, já aprendeu a escrever o meu nome e a desenhar um barco e uma estrela. Cheio de orgulho, lá lhe vou abrindo a “cela” todos os dez minutos para ele correr até às irmãs a mostrar o que anda a aprender.


Além de tudo isto, tenho re-descoberto em Calcutá as virtudes de se voltar a ter tempo para deambular, num fazer-nada desplicente e o pior é que estou a gostar. Perco tempo a visitar restaurantes, a dar voltas ao parque à procura de alguém que queira dar uns toques na bola, a entrar em bairros e vielas sem um propósito, a ler sobre o Sri Ramakrishna e a arte da meditação e a inteirar-me sobre o micro-crédito do Grameen. Outra decisão importante a comunicar e que depois de sobejamente reflectida, está prestes a ser tomada: que todos os três anos, sem período de carência e por prazo indeteminado, de agora em diante e esteja eu onde estiver, haja poupanças suficiente para ficar seis meses, no mínimo, sem trabalhar, para me dedicar não só ao bem comum mas também à felicidade própria. Assim queira e permita o Senhor.

sexta-feira, julho 24, 2009

Episodio 1: Bombaim

Calcuta, 24 de Julho do ano de 2009.

Camaradas,
Na India ha duas coisas que por mais que se tente captar, jamais se conseguira ser fiel ao original: falo das cores e dos cheiros. Nao podendo captar os odores nem po-los em palavras, e para nao cair na trivialidade de criar mais uma palete esbatida , optei por publicar a maioria das fotos em preto e branco. Por enquanto apenas o primeiro episodio passado em Bombaim esta disponivel, para breve e a medida que forem acontecendo, os restantes. Em vez dos cheiros, optei por vos presentear com os sons. Banda sonora a cargo do indiano Nitin Sawhney.

Aquele abraco,
Bruce Lee Singh

quarta-feira, julho 22, 2009

Diário de Viagem - dia 8

17 de Julho de 2009,

O cheiro a mijo que emana deste colchão não me deixa dormir. Finalmente são cinco e quarenta e cinco e toca o despertador. Depois de um duche de água fria saio a caminho da Mother’s House. Faço o caminho a pé pelo bairro muçulmano onde de um lado e de outro os homens se lavam à beira da estrada com uns baldes improvisados enquanto alguns lojistas vão abrindo as persianas das chafaricas para começarem a vender. Às sete, depois da missa a que os mais devotos e resistentes assistem, abrem-se as portas para o pequeno almoço e sentados em bancos corridos cada um tem direito a uma fatia de pão, a uma banana que desaparece com uma dentada e a um copo de chá com leite. Talvez umas 100 pessoas, na maioria estudantes universitários que aproveitam as férias de verão para fazer isto, viram-se agora para os cartazes que nas paredes brancas desta casa guiam a oração antes da saída.

São sete e meia e a sineta que toca prenuncia a abertura dos portões. Uma das irmãs sobe em cima dum banco para avisar que devido às tumultuosas greves que vão acontencendo por Calcutá - ontem houve algures na cidade um punhado de autocarros a arder como retaliação por uma tal de subida do imposto municipal - os voluntariados que tenham de deslocar-se para longe são aconselhados a não ir dado o perigo iminente. É o meu caso. É certo que não vim para Calcutá para folgas e que para o Senhor um dia de voluntariado cumprido sob tão delicadas condições contará a dobrar. Junto-me a mais dois ou três que pensam assim e seguimos a caminho de Daya Danh. Oito e meia e chegamos finalmente ao destino, depois de 15 minutos de táxi e de mais uns tantos a pé. Junto à porta, de túnica branca com risca azul uma das freiras dá-nos as boas vindas, espantada com o facto de termos resolvido vir. Entro.

Nunca acreditei na sorte, muito menos no azar. Sempre estive certo que cada um trilha o seu caminho e que as coisas acontecem quando queremos muito e fazemos por isso. À minha frente duas cadeiras de rodas onde se torcem dois miúdos paralíticos que vão sendo guiados para um passeio no jardim, enquanto um puto nú foge a coxear, pela sala principal, duma freira que segura uns calções na mão. No canto da sala um outro - vim a saber mais tarde cego, surdo e mudo - que a única coisa que faz é abanar a cabeça pendularmente para a esquerda e para a direita e soltar umas gargalhadas estridentes de quando em vez. Impávidos, sem reacção, três vegetais apertados numas cadeiras improvisadas de madeira olham para a parede e imaginam qualquer coisa que nunca vi. Todos eles, maiores de quatro anos, são “órfãos” de pai e de mãe, deficientes de nascença e abandonados à porta desta instituição com poucos dias de vida. Encontraram aqui a fuga à sentença prematura e uma casa que lhes dá o que vestir, o que comer e os protege do que há lá fora. Há autistas, cegos, surdos e mudos, paralíticos e deficientes mentais. Todos eles têm nome mas destes muito poucos alguma vez serão alguém. Aos doze anos serão mudados para outra casa, depois para outra e finalmente para outra, até que pela última vez ouçam o chiar da cadeira que os prende ao chão ou sintam no ombro a mão que nunca conseguiram ver. Perante tamanha lição de humildade aprendo agora que há muita gente que nunca chega a ter a sorte de não ter de depender do azar.

O primeiro dia aqui foi fértil em sensações. Como poucos voluntários vieram, houve trabalho para 4 horas sem parar. Muita roupa para torcer e para secar no terraço. Desço as escadas e um dos putos vem a correr para mim e estende-me a mão. Assim que a toco não mais a larga. Não fala, pouco anda e só pelos sorrisos que vai esboçando me apercebo que deve estar feliz. Sentamo-nos para ver um filme e imperialmente estende a sua perna em cima da minha para um pouco de conforto até que outra criança, aqui já ao lado, me diz que precisa de ir à casa de banho. Apercebo-me que não anda e levo-o ao colo até lá. Entro no cubículo e sem tocar no chão - as pernas dele fazem um ângulo de quarenta e cinco graus - consigo desajeitadamente tirar-lhe a roupa necessária para que não se molhem os calções. Humildemente pede-me que feche a porta para que ninguém espreite. E pela primeira vez sinto o peso da responsabilidade de ter alguém a depender totalmente de mim. Embora latentemente negativo, o ambiente que se vive em Daya Danh é feliz, descontraído. Os putos fazem a festa, gritam, batem palmas e aventuram-se em todo o tipo de loucuras até que as irmãs o permitam. Embora já passe da hora de saída, fico mais um pouco para terminar de dar de comer a uma das três ou quatro crianças paralíticas que aqui vivem. Meias colheradas de cada vez, ao som do “avião” que me lembro ouvir os meus pais fazerem quando em miúdo não queria comer e a refeição está terminada. Hora de meter a tropa a dormir a sesta e o primeiro dia está terminado.

De regresso à cidade, agora no metro velho de Calcutá, um certo orgulho de ter tomado as decisões que me trouxeram até aqui e a confiança de um primeiro dia de dever cumprido. No meio do fatalismo que embora invisível paira sobre Daya Danh, sei agora que o azar, tal como o vento, sopra mais forte nuns dia do que noutros.

Diário de Viagem - dia 7

16 de Julho de 2009,

O hospital está em obras e entro pelo canto das emergências. Alguém grita deitado no chão, enquanto cinco homens o tentam acalmar. Não entendo a causa, mas dá dó. Ao meu lado um velhote com respiração ofegante e uma mãe que em vão tenta segurar a filha que desata a correr. Por detrás do guichet duas mulheres descontraídas que, a observar pelas caretas que fazem, estão perfeitamente habituadas a este ambiente infernal. É um hospital velho, caótico, terceiro mundista este em que finalmente recebo a segunda dose da raiva. Em vão desloco-me ainda a três farmácias em busca da vacina da cólera mas ao que parece foi abolida na Índia. Não há dia em que esta cidade, que confiantemente apelido já de Bagdade, não me surpreenda. A pobeza miserável que aqui vejo desafia os limites do imaginável e a terminar a manhã uma mulher pobre, meio nua, come as entranhas dum corvo que, ainda só meio depenado, vive os primeiros cinco minutos de morte.
À tarde, depois de um almoço tardio em que me inicio na gastronomia vegetariana do Rajastão, pouco aconteceu. Uma hora num cibercafé e uma cerveja de final de tarde e regresso ao hotel. Termino o início de noite a assistir a mais um êxito de Bollywood e ponho o despertador para as cinco e quarenta e cinco da manhã, porque o trabalho começa às sete. Será o primeiro dia a concretizar o objectivo que me trouxe aqui.

quinta-feira, julho 16, 2009

Diário de Viagem - dia 6

15 de Julho de 2009,

Embora a primeira noite em Calcutá não tenha sido pacífica - fiquei num hotel que embora sugerido pelo Lonely Planet é talvez a maior espelunca onde já alguma vez estive, com mendigos a pernoitar no hall de entrada junto à minha porta e um quarto com uma ventoinha que faz tanto barulho que não me deixa dormir - vou motivado a caminho de Park Street. Nos meus contactos antes de embarcar nesta aventura tinha conseguido o contacto de um tal de Mr. Ravi Poddar, Cônsul Honorário de Portugal em Calcutá. Até agora não entendo muito bem o interesse de um consulado, ainda que honorário, em Calcutá, já que nenhum português reside aqui, não há interesses portugueses na cidade e raramente alguém lhes bate à porta. Em todo o caso, ao que parece é tradição nas grandes cidades indianas o governo português entrar em contacto com algum empresário local reputado e fazê-lo diplomata. Foi o caso do Mr. Poddar, que de empresário automóvel foi transformado em cônsul. É notório o império que construiu. Em plena Park Street, uma das artérias principais do centro de Calcutá, mandou construir um edifício que apelidou de Ravi Auto House, com 6 andares, que além do stand onde desfilam Mercedes e outras marcas de luxo alberga também os escritórios da sua e de outras empresas, restaurantes e outros estabelecimentos. Fui recebido às 11.30 pelo Anup - o mão direita do Sr. Ravi - que fazia “sala” enquanto o patrão terminava uma reunião. Dez minutos mais tarde fui finalmente recebido pelo magnata que de forma simpática me deu as boas vindas, me contou das suas visitas diplomáticas a Portugal e da recepção que foi feita ao presidente português em Delhi no ano passado, assim como dos poucos vestígios portugueses que remanescem em Calcutá - um curso da língua de Camões na Universidade da cidade e uma rua a que chamaram de Rua da Igreja Portuguesa. Hei-de lá ir. De rompante entra o Gaudam na sala, o director de marketing da empresa, um tipo novo com ar bonacheirão que estudou português durante umas semanas (já se esqueceu de tudo) e que acabou por desistir para pragmaticamente se iniciar no mandarim.

Entre apresentações, despeço-me do Mr. Ravi - fica a promessa de ficarmos em contacto e de num dos próximos fins de semana me levar a uma cidade junto a Calcutá onde haverá um festival religioso hindu - e o Anup e o Gaudam convidam-me para almoçar e levam-me depois disso à Mother House onde será às 3 horas da tarde o briefing aos voluntários. Inacreditável o número de estrangeiros que aguardam no terraço do local de retiro uma oportunidade para se voluntariarem: muitos espanhóis, muitos japoneses e depois um grupo misturado de belgas, irlandeses, ingleses e eu, que já em conversa avançada vamos discutindo quais das opções escolher, que são várias em termos de locais mas que se dividem essencialmente em crianças e idosos. Embora a minha vontade tombasse para a segunda, depois de ver as fotos que vinham na brochura e de me relembrar da estória que me contaram do velhote que tinha morrido nos braços do voluntário enquanto este lhe dava banho, optei por começar pelo aparentemente mais fácil e, caso se proporcione, avancarei para o nível mais avançado na última das 3 semanas que me voluntariarei. Quinta-feira (amanhã) é o único dia de folga semanal pelo que só na sexta-feira começarei a trabalhar. Será certamente duro, pela experiência e certamente para mim pelo facto de o encontro para o pequeno almoço ser todos os dias às 7 da manhã (quem me conhece bem sabe que eu não sou um animal diurno!) e serem depois disso 4 horas de trabalho intensivo até ao meio-dia, com possibilidade de um turno à tarde para quem quiser. São tantas as nacionalidades como as estórias de vida que aqui se reúnem: uma belga de 46 anos que deixou os filhos e o marido em casa para concretizar este que era um sonho de uma vida, um indiano órfão nascido em Calcutá, criado durante os primeiros 8 meses pelas freiras desta casa e depois adoptado por um casal de belgas e que faz deste o seu primeiro regresso a casa depois de mais de 30 anos, um inglês que anda pela Índia durante 5 meses, eu que me despedi para vir fazer isto, um irlandês que junto com a mulher tiraram um mês de férias para vir conhecer Calcutá. No final de contas um punhado de malucos.

Acabámos o dia a beber cervejas no terraço do hotel, antes de seguir para um jantar rápido com o indiano, a sua namorada belga e com a maluca que deixou o marido e os filhos em casa para concretizar este sonho de uma vida. Há quem assegure que nada nesta vida é impossível. Á volta desta mesa não há seguramente quem rebata essa afirmação.

Diário de Viagem - dia 5

14 de Julho de 2009, dia 5

Uma atrás da outra subo novamente as escadas do Mondegar, talvez pela última vez. Despeço-me do Siva e rumo ao aeroporto um pouco mais cedo para ter tempo ainda de ver das vacinas. Como já augurado o médico de ontem era realmente incompetente e tomar as vacinas no aeroporto seria mais uma dor de cabeça: teria de as ter comprado primeiro, arranjado a prescrição médica, o diabo a sete. Será em Calcutá, assim o espero.
O vôo está atrasado 3 horas, porque o avião que vinha de Goa, devido às monções, atrasou.
Chego a Calcutá, finalmente, às 22. Chove intensamente e o caminho até ao hotel revela apenas aquilo que já esperava: que a segunda maior cidade da Índia é, em todo o seu esplendor, o rosto da miséria profunda. Um dos poucos mas fortes governos comunistas no país que, em nome da igualdade, parece que mais não fez do que tornar todos igualmente pobres. Chove intensamente e são milhares os que nas beiras das estradas dormem encharcados porque o que dorme ao seu lado foi mais rápido a encontrar a última ponta de plástico. Não é um filme, acontece à minha frente. Se alguma vez tive dúvidas que a fazer voluntariado teria de ser aqui, posso dormir descansado.

Diário de Viagem - dia 4

13 de Julho de 2009,

Prometi ao Siva que hoje fazia novamente uma visita ao café Mondegar. Já há duas semanas sem trabalhar - continuarei por mais dois meses assim - tomei hoje a consciência de que o tempo passa mas a uma velocidade diferente. A necessidade de se apressar deixa de fazer sentido porque já aqui à frente se passeia todo o tempo do mundo e sem que eu me importe com isso. Sei que hoje é segunda-feira porque fui procurar saber. Podia ser sexta, quarta ou sábado sem que isso interferisse nos meus planos. Hoje é segunda-feira e o telefone toca com o lembrete de que ao meio-dia o Sanjeev passa aqui em baixo para me apanhar. Assim é. Entre o abrir da porta do hotel e o fechar da porta do carro, o calor começa a fazer-se sentir porque já não chove há quase um dia.

No sábado partilhei com ele o meu espanto relativamente ao facto de - e ao contrário do que se vê diariamente em Shanghai - raramente ter visto grandes carros a lavrar as estradas de Bombaim. Acho que ele sentiu na minha inquietação a comparação explícita e a dúvida no poderio do capitalismo democrático indiano e ainda antes do almoço fez questão de passar pelos stands da Porsche, da Rolls Royce, da Range Rover e da Jaguar - que entrou na Índia apenas no mês passado. Para que a dúvida não subsista, sobe a íngreme estrada até Bandra West para me mostrar do lado esquerdo a última extravagância do homem mais rico da Índia, fundador do conglomerado Reliance: a construção da sua nova “casa” que curiosamente não chega a entrar no conceito de mansão - um edifício com talvez 20 andares, onde se incluem 3 de estacionamento, 4 para os luxuosos apartamentos de cada um dos filhos, alguns 3 para um hotel que receberá os futuros convidados, e outros tantos distribuidos entre cinemas, restaurantes, heliporto e mais umas quantas futilidades. De noite, enquanto continuar a construção, albergará também, por entres os tapumes que as protegem das chuvas, duas dúzias de famílias que a esta hora palmilham as ruas de Bombaim em busca de coisa nenhuma.

Segunda-feira (?) foi também o dia de mais um excelente almoço, desta vez no Horse Racing Club, que como o próprio nome indica é onde parte da elite de Bombaim vem gastar uns trocos em apostas de cavalos ao final de semana, hábito que vem dos tempos da governação britânca. Hoje os cavalos descansam e a minha aposta vai para o caril de peixe goês, para a famigerada Kingfisher e para o kulfi. Aposta ganha, a repetir. Depois do almoço seguimos para os jardins suspensos, no topo da cidade, de onde se consegue a panorâmica da cidade e acabamos por descer ao hospital, onde preciso de repetir a dose da cólera e da raiva. Sem lugar para estacionar, o Sanjeev entrega a chave do carro a um puto de rua que descalço e ainda sem idade para conduzir a guarda com a promessa de que em que caso de necessidade o muda de sítio. É a prova derradeira de que nada há a temer nesta cidade. O hospital, um edíficio carcomido pelo tempo e em plena lotação, é apenas mais um reflexo deste caos urbano em que vivem 16 milhões de pessoas em espaço limitado. Por entre macas onde os lençóis ainda conservam sinais de sangue seco pelo mofo, pacotes de soro encostados no corredor e pequenos cubículos semi fechados por cortinas onde famílias esperam pelo diagnóstico do patriarca, encontrei o médico. É um velhote com um ar incompetente e com pouca vontade de trabalhar, que continua a inventar razões para que eu espere por amanhã e que faça a consulta directamente no aeroporto. Embora com todo o tempo do mundo, não pretendo desperdiçá-lo. Decido fazer como me dizem e saio.

Antes de me despedir - a lógica insiste que talvez seja para sempre - do meu amigo Sanjeev, de agradecer a tremenda hospitalidade e de, com pena, regressar ao hotel, contornamos o café Mondegar. Venho agora a saber que este foi um dos cinco locais espalhados pela cidade onde foram cometidos os atentados em Novembro último, por paquistaneses desembarcados nesse mesmo dia junto a Chowpatti Beach e armados de metralhadoras, que acabaram a disparar a sangue frio, com todo o tempo do mundo e mais meio, e em todas as direcções, até que o rasto de sangue que escorreu pelas três escadas da entrada tenha encontrado o seu caminho na sargeta que desemboca junto à banca dos jornais.

Tinha planos para visitar o Taj Hotel para um copo mais à noite mas a chuva teima em não parar e a piscina lá fora não me motiva a sair. Acabo a noite no quarto, a estrear-me nos êxitos de Bollywood e a acabar com os iogurtes que comprei faz já dois dias. Tinha prometido regressar hoje ao Mondegar mas não deu. Talvez suba essas três escadas novamente amanhã.