31 de Agosto, sétima semana.
Dia 8 de Agosto marcou o início da segunda metade desta viagem. O dia a dia tranquilo de Calcutá rapidamente se transformou em lutas perdidas contras insónias em combóios apinhados de gente, em caminhadas de mochila às costas dentro das cidades dos Marajás e na dúvida empolgante do meu paradeiro no dia de amanhã. Deixei para trás a estação de combóios revolvida e suja de Barddhawan em direcção a Varanasi - uma das 4 cidades sagradas do hinduísmo. Passei depois por Agra para prestar tributo ao Taj Mahal e terminei a semana em Nova Delhi a jantar no Hard Rock com o Telmo - mais um português em diáspora - e em cativante conversa a fortalecer a minha convicção camusiana de que aqueles a quem falta coragem encontrarão sempre uma filosofia para o justificar. Ainda sem a digestão do único hamburger de vaca comido nestes dois meses feita, embarquei no Rajasthan Express, que me levou pelas paisagens desertas do quadrante noroeste até ao Rajastão, onde em Jaipur, Pushkar, Udaipur, Jodhpur, Kumbalgarh e Ranakpur me iniciei na história do império Moghul e dos Rajás e onde esperei para ver o mais magnífico sol pôr-se nos terraços do forte de areia em Jaisalmer. A três dias de regressar a casa, depois de ter feito uma incursão inesperada pelas terras do Ceilão, encontro agora em Goa, onde a chuva tropical ameaça não parar, algum tempo para terminar o vigésimo livro e arrumar a cabeça depois da mais longa viagem da minha vida.
Guruji.
“The best for last” repete o G.P., enquanto me desvio das bostas que povoam as ruas estreitas de Varanasi. A intenção inicialmente era ficar dois dias mas não querendo resistir à magia do local, arrastei a minha partida. Varanasi é, de todas as cidades sagradas na índia, talvez a mais mística. Aqui vêm terminar os corpos de milhões de hindús que envoltos em panos coloridos e perfumados em sândalo sobem as colinas da cidade para se entregarem às chamas da fogueira que, junto ao Ganges, não param de lavrar. Embora perturbadora, a imagem dos corpos consumidos pelo fogo junto à família que, vestida de branco, está proibida de chorar uma lágrima que seja para que a alma não encontre barreiras à ascenção divina, não deixa de instigar alguma beleza cromática.
Enquanto me vai contando as últimas estórias do irmão viúvo que passa os dias a deambular pelas ruas à espera que a cirrose lhe dite o destino final, continuo fixado na conversa que tivemos ontem. Visitávamos o local onde o Buddha terá dado o seu primeiro sermão e o G.P. (abreviatura para Gajamand Pamdey, o guia de 70 anos que contratei em Varanasi e que facilmente daria uma personagem de banda desenhada) ia fazendo questão em convencer-me que o destino não só existe como é incontornável. Falou-me das três coisas que aparentemente não conseguirei mudar: quando e onde nasço, quando e onde morro, e o lucro ou prejuízo dum negócio próprio. As duas primeiras não tinha eu como argumentar. A terceira, embora facilmente contestável, fica agora no role de boas desculpas para dar num futuro emprego caso as coisas corram mal. Em franca provocação perguntei-lhe: “Imagina que aparecia agora aqui uma cobra a dois metros de ti a bloquear-nos o caminho. O que é que fazias?” Do alto dos seus 70 anos de experiência e imperturbável convicção no destino respondeu: “Continuava a andar”, enquanto apontava para o céu com a mão direita como quem diz “É Ele que decide quanto o meu tempo estiver para chegar”. Foi naquele momento que percebi, com a rapidez com que uma cobra rasteja para mudar de sentido, que tinha encontrado o meu “guruji”. Para os hindús o guruji funciona como o líder espiritual, um homem que embora deste mundo, pela sua sapiência e pela forte ligação espiritual às coisas do além, ganha um estatuto quase sobrenatural.
O slalom por entre as bostas matutinas fica agora dificultado com a mochila às costas mas não fazer um desvio para conhecer o guruji do meu guruji G.P. antes de seguir para Agra parecia-me agora rumar contra o destino. “The best for last” repete freneticamente e pela última vez o G.P., antes de eu subir as escadas e desviar as cortinas que me colocam agora frente a frente com o supremo guruji. É um tipo novo, trinta e muitos, barba e cabelo compridos, a fazer lembrar um ayatollah, com o sorriso provocatório de alguém que sabe que nasceu com um dom e que só com um olhar de segundos nos tira a radiografia completa. Sentado no chão coberto por tapetes, a fumar pachorrentamente um cigarro e a beber um copo de chá perfumado, vai olhando para os quadros que decoram a pequena sala - um Jesus crucificado, um Buddha pensativo de pernas cruzadas e uns quantos Vishnu e Brahma e outras tantas reincarnações - enquanto espera que eu decida que consulta esotérica vou querer pagar. Sempre aleguei que não acredito em previsões astrológicas mas sou cauteloso o suficiente para não negar totalmente à partida uma coisa que desconheço. Optei pela consulta mais básica e barata, umas 1500 rupias, enquanto ele tenta convencer-me a escolher a mais completa, depois de duas raparigas claramente perturbadas com a consulta que tinham terminado há uns minutos terem voltado a entrar na sala para declinarem comprar por umas 10 mil rupias a cura para os problemas que o guruji teria visto no seu caminho. Além da descrença em tudo o que seja esoterismo bacoco também sempre aleguei que a experimentar fazer uma coisas dessas, teria de ser numa altura em que o meu estado de espírito e a minha força interior estivessem num ponto alto e as minhas convicções inabaláveis, porque há coisas que nunca se está preparado para ouvir e outras que ouvindo não saberemos como digerir. Em todo o caso, este parecia-me o momento certo. Foram 20 minutos de intensas revelações que a bem da futurologia e da verdade cósmica sou forçado a resumir. Aqui ficam as palavras do guruji:
• Desde os 26 anos que entrei na melhor fase da minha vida mas a fase de maior felicidade começará aos 30.
• Aos 31 anos terei o meu primeiro filho - neste caso uma filha - e esta será uma fase de crescente sorte na minha vida. Terei 3 filhos no total (filha-filho-filha) o que (atenção o guruji não disse isto) deixará a minha mãe tranquila por saber que em breve terá uma neta.
• Serei milionário aos 35 anos com um negócio próprio, que poderá acontecer nas áreas dos têxteis, da imobiliária ou do import-export.
• Irei casar com uma mulher mais nova, estrangeira e do ramo das artes. Miúdas que não entrem nesta categorização, temos pena, mas estão fora da corrida.
• Vou ter uma vida longa e recheada, até aos 82/83 anos. A avaliar por isto, até lá posso lutar contra cobras e leões e enfrentar todo o tipo de perigos.
• Entre os 39 e os 42 anos tenho de evitar desafios radicais como sejam saltos de paraquedas e carros rápidos.
• Não foram vislumbrados problemas de maior na minha vida (saúde e afins) e os poucos males de que padeço são a dívida que estou a pagar por uma vida anterior em que terei sido meio patife, meio pulha.
• Se não tivesse sido gestor, teria sido professor ou arquitecto, o que a bem da verdade, foram realmente profissões que cheguei a ponderar.
Depois disto, por 5000 rupias foi-me oferecido um colar de pedras que ao que parece me afastaria de todos os males. Mas, como diz o meu guruji, não há nada que eu possa fazer para fugir do destino. A acreditar nisso, dou um abraço ao G.P. na estação suja de Varanasi e penso nas opções que tenho para gastar as 5000 rupias que acabei de poupar. Não foi difícil decidir: vou adiar o meu regresso a casa para início de Setembro e dar um salto ao Sri Lanka.
Ceilão.
As armas e os barões assinalados,
Que da ocidental praia Lusitana,
Por mares nunca de antes navegados,
Passaram ainda além da Taprobana,
Em perigos e guerras esforçados,
Mais do que prometia a força humana,
E entre gente remota edificaram
Novo Reino, que tanto sublimaram.
Estes dois meses de viagem pelo subcontinente indiano foram, em larga medida, um revisitar dos Lusíadas, canto a canto, embrenhado numa aula de história ao vivo e a cores. A máxima de que “sucesso é fiasco atrás de fiasco sem perda de entusiasmo” fez-nos dobrar cabos das tormentas, ser os primeiros a chegar aqui e dominar o Mundo durante algumas décadas. Ler isto nos livros de história cheira a mentira mas ver na primeira pessoa que os Da Silva dominam o negócio dos transportes no Sri Lanka, que há Fonsekas a torto e a direito depois de 500 anos de estarmos no Ceilão e que palavras como “sapato”, “vidro”, “armário” e tantas outras são de uso corrente não deixam margem para dúvidas. Uma roadtrip de 9 dias pela Taprobana (que mais tarde se tornou Ceilão e recentemente Sri Lanka), foi não so viajar por um canto dos Lusíadas como visitar uma ilha que durante 30 anos e até há oito meses atrás esteve em guerra civil e onde ainda não se conseguem conduzir mais do que 50 quilómetros sem um checkpoint para segurança ou tomar banho na praia sem ter um soldado a escoltar-nos de metralhadora em punho, com receio de que haja ainda Tigres Tamil à solta.
Ficou a cargo do Vee Jeh Singhe, nosso condutor de serviço (mais uma personagem de ficção saída de algum filme independente) mostrar-nos o outro lado do país, guiar-nos por Kandy, onde na Guesthouse Lake Bungalow encontrámos mobiliário português, pelo Grand Canyon de Sigaryia, pelas plantações de chá do Ceilão em Nuwara Ellia e Ella, levar-nos a um safari fiasco em Yala e conduzir uma noite inteira até à magnífica praia virgem em Trincomalle, onde repousámos magnânimamente durante três dias e a compensar-nos num safari em Pinawella onde vimos elefantes à séria. Depois de nove intensos dias na estrada ficou a vontade de voltar a um país que recomeça agora do zero mas onde a simpatia é certamente milenar, onde o soldado de metralhadora em punho sorri com a mesma ingenuidade do empregado do hotel, da mulher que manda na padaria e dos posters do presidente, que invadem agora todas as paredes que ainda parecem estar livres.
Setembro, últimos dias.
Regresso agora onde há dois meses começou esta jornada: Bombaim. Por um lado parece que foi ontem, por outro parece que foi há uma eternidade atrás. Foi uma viagem que mudou a minha vida, tal como todas as outras que fiz antes. De forma persistente, quase perturbadora, sinto a necessidade de sistematizar de que forma esta viagem me terá moldado. Mas o que me vem à cabeça não são sistematizações ou grandes revelações. Vejo as escadas do Mondegar e os paquistaneses a desembarcar em Chowpatti Beach antes dos ataques de Novembro, relembro os pobres e os miseráveis de Calcutá, os que esperam a morte no corredor de Kalighat e os putos a correr nos corredores da Daya Danh com a energia de quem não sabe que não há mais lugar nenhum para onde ir. Saboreio o menú do Olypub, o bolo de chocolate do Flurry, a fresca da Kingfisher sentado no páteo do hotel e a caldeirada de peixe que jantei no meu 29º aniversário em Goa. Sinto o cheiro dos combóios apinhados de gente e da comida que religiosamente às oito sai das mochilas das famílias que vão passar a noite a olhar lá para fora enquanto eu luto contra as insónias no beliche lá de cima. Ouço os sotaques do português nas aulas da universidade, as palmas dos milhares em Tarakeswar, os motores dos carros que escoltam o líder da oposição e as metralhadoras silenciosas no Sri Lanka. Relembro as horas que arruinei a discutir por menos de um euro viagens de riquexó, a estação suja de Barddhawan e os yogis que me serviram a comida dos deuses. Repito todas as respostas para as perguntas que tinha antes de vir, todas as novas perguntas que cá descobri e todas as palavras que no Ceilão soam a português. Sonho com a estória do Taj Mahal, com a vista dos terraços de Jaisalmer e com a praia de Trincomalle. Releio todos os livros magníficos que cá comprei, coloco-me na pele do Branson, do Obama, do Bin Laden e do Monge que vendeu o Ferrari. Olho para os cartões de visita das pessoas que aqui conheci, do negociante de automóveis que se tornou Cônsul Honorário, da professora que decidiu começar um curso de português na universidade em Calcutá, do Arindam que me afastou do chão sujo e revolvido da estação de Barddhawan, do G.P. e do Vee Jeh, do cozinheiro americano que conheci no autocarro a caminho de Colombo e que anda à volta do Mundo a trabalhar em restaurantes para aprender a cozinhar tudo o que há para aprender, do australiano que 95% das refeições só come fruta porque acredita que lhe dá paz de espírito ou da melhor amiga da dona da Guesthouse em Kandy, que vim a descobrir é sogra duma portuguesa que vive na Rua República da Bolívia, a 100 metros da minha casa.
Sistematizo tudo isto e o resultado é somente um sorriso do tamanho do Mundo.
Dia 8 de Agosto marcou o início da segunda metade desta viagem. O dia a dia tranquilo de Calcutá rapidamente se transformou em lutas perdidas contras insónias em combóios apinhados de gente, em caminhadas de mochila às costas dentro das cidades dos Marajás e na dúvida empolgante do meu paradeiro no dia de amanhã. Deixei para trás a estação de combóios revolvida e suja de Barddhawan em direcção a Varanasi - uma das 4 cidades sagradas do hinduísmo. Passei depois por Agra para prestar tributo ao Taj Mahal e terminei a semana em Nova Delhi a jantar no Hard Rock com o Telmo - mais um português em diáspora - e em cativante conversa a fortalecer a minha convicção camusiana de que aqueles a quem falta coragem encontrarão sempre uma filosofia para o justificar. Ainda sem a digestão do único hamburger de vaca comido nestes dois meses feita, embarquei no Rajasthan Express, que me levou pelas paisagens desertas do quadrante noroeste até ao Rajastão, onde em Jaipur, Pushkar, Udaipur, Jodhpur, Kumbalgarh e Ranakpur me iniciei na história do império Moghul e dos Rajás e onde esperei para ver o mais magnífico sol pôr-se nos terraços do forte de areia em Jaisalmer. A três dias de regressar a casa, depois de ter feito uma incursão inesperada pelas terras do Ceilão, encontro agora em Goa, onde a chuva tropical ameaça não parar, algum tempo para terminar o vigésimo livro e arrumar a cabeça depois da mais longa viagem da minha vida.
Guruji.
“The best for last” repete o G.P., enquanto me desvio das bostas que povoam as ruas estreitas de Varanasi. A intenção inicialmente era ficar dois dias mas não querendo resistir à magia do local, arrastei a minha partida. Varanasi é, de todas as cidades sagradas na índia, talvez a mais mística. Aqui vêm terminar os corpos de milhões de hindús que envoltos em panos coloridos e perfumados em sândalo sobem as colinas da cidade para se entregarem às chamas da fogueira que, junto ao Ganges, não param de lavrar. Embora perturbadora, a imagem dos corpos consumidos pelo fogo junto à família que, vestida de branco, está proibida de chorar uma lágrima que seja para que a alma não encontre barreiras à ascenção divina, não deixa de instigar alguma beleza cromática.
Enquanto me vai contando as últimas estórias do irmão viúvo que passa os dias a deambular pelas ruas à espera que a cirrose lhe dite o destino final, continuo fixado na conversa que tivemos ontem. Visitávamos o local onde o Buddha terá dado o seu primeiro sermão e o G.P. (abreviatura para Gajamand Pamdey, o guia de 70 anos que contratei em Varanasi e que facilmente daria uma personagem de banda desenhada) ia fazendo questão em convencer-me que o destino não só existe como é incontornável. Falou-me das três coisas que aparentemente não conseguirei mudar: quando e onde nasço, quando e onde morro, e o lucro ou prejuízo dum negócio próprio. As duas primeiras não tinha eu como argumentar. A terceira, embora facilmente contestável, fica agora no role de boas desculpas para dar num futuro emprego caso as coisas corram mal. Em franca provocação perguntei-lhe: “Imagina que aparecia agora aqui uma cobra a dois metros de ti a bloquear-nos o caminho. O que é que fazias?” Do alto dos seus 70 anos de experiência e imperturbável convicção no destino respondeu: “Continuava a andar”, enquanto apontava para o céu com a mão direita como quem diz “É Ele que decide quanto o meu tempo estiver para chegar”. Foi naquele momento que percebi, com a rapidez com que uma cobra rasteja para mudar de sentido, que tinha encontrado o meu “guruji”. Para os hindús o guruji funciona como o líder espiritual, um homem que embora deste mundo, pela sua sapiência e pela forte ligação espiritual às coisas do além, ganha um estatuto quase sobrenatural.
O slalom por entre as bostas matutinas fica agora dificultado com a mochila às costas mas não fazer um desvio para conhecer o guruji do meu guruji G.P. antes de seguir para Agra parecia-me agora rumar contra o destino. “The best for last” repete freneticamente e pela última vez o G.P., antes de eu subir as escadas e desviar as cortinas que me colocam agora frente a frente com o supremo guruji. É um tipo novo, trinta e muitos, barba e cabelo compridos, a fazer lembrar um ayatollah, com o sorriso provocatório de alguém que sabe que nasceu com um dom e que só com um olhar de segundos nos tira a radiografia completa. Sentado no chão coberto por tapetes, a fumar pachorrentamente um cigarro e a beber um copo de chá perfumado, vai olhando para os quadros que decoram a pequena sala - um Jesus crucificado, um Buddha pensativo de pernas cruzadas e uns quantos Vishnu e Brahma e outras tantas reincarnações - enquanto espera que eu decida que consulta esotérica vou querer pagar. Sempre aleguei que não acredito em previsões astrológicas mas sou cauteloso o suficiente para não negar totalmente à partida uma coisa que desconheço. Optei pela consulta mais básica e barata, umas 1500 rupias, enquanto ele tenta convencer-me a escolher a mais completa, depois de duas raparigas claramente perturbadas com a consulta que tinham terminado há uns minutos terem voltado a entrar na sala para declinarem comprar por umas 10 mil rupias a cura para os problemas que o guruji teria visto no seu caminho. Além da descrença em tudo o que seja esoterismo bacoco também sempre aleguei que a experimentar fazer uma coisas dessas, teria de ser numa altura em que o meu estado de espírito e a minha força interior estivessem num ponto alto e as minhas convicções inabaláveis, porque há coisas que nunca se está preparado para ouvir e outras que ouvindo não saberemos como digerir. Em todo o caso, este parecia-me o momento certo. Foram 20 minutos de intensas revelações que a bem da futurologia e da verdade cósmica sou forçado a resumir. Aqui ficam as palavras do guruji:
• Desde os 26 anos que entrei na melhor fase da minha vida mas a fase de maior felicidade começará aos 30.
• Aos 31 anos terei o meu primeiro filho - neste caso uma filha - e esta será uma fase de crescente sorte na minha vida. Terei 3 filhos no total (filha-filho-filha) o que (atenção o guruji não disse isto) deixará a minha mãe tranquila por saber que em breve terá uma neta.
• Serei milionário aos 35 anos com um negócio próprio, que poderá acontecer nas áreas dos têxteis, da imobiliária ou do import-export.
• Irei casar com uma mulher mais nova, estrangeira e do ramo das artes. Miúdas que não entrem nesta categorização, temos pena, mas estão fora da corrida.
• Vou ter uma vida longa e recheada, até aos 82/83 anos. A avaliar por isto, até lá posso lutar contra cobras e leões e enfrentar todo o tipo de perigos.
• Entre os 39 e os 42 anos tenho de evitar desafios radicais como sejam saltos de paraquedas e carros rápidos.
• Não foram vislumbrados problemas de maior na minha vida (saúde e afins) e os poucos males de que padeço são a dívida que estou a pagar por uma vida anterior em que terei sido meio patife, meio pulha.
• Se não tivesse sido gestor, teria sido professor ou arquitecto, o que a bem da verdade, foram realmente profissões que cheguei a ponderar.
Depois disto, por 5000 rupias foi-me oferecido um colar de pedras que ao que parece me afastaria de todos os males. Mas, como diz o meu guruji, não há nada que eu possa fazer para fugir do destino. A acreditar nisso, dou um abraço ao G.P. na estação suja de Varanasi e penso nas opções que tenho para gastar as 5000 rupias que acabei de poupar. Não foi difícil decidir: vou adiar o meu regresso a casa para início de Setembro e dar um salto ao Sri Lanka.
Ceilão.
As armas e os barões assinalados,
Que da ocidental praia Lusitana,
Por mares nunca de antes navegados,
Passaram ainda além da Taprobana,
Em perigos e guerras esforçados,
Mais do que prometia a força humana,
E entre gente remota edificaram
Novo Reino, que tanto sublimaram.
Estes dois meses de viagem pelo subcontinente indiano foram, em larga medida, um revisitar dos Lusíadas, canto a canto, embrenhado numa aula de história ao vivo e a cores. A máxima de que “sucesso é fiasco atrás de fiasco sem perda de entusiasmo” fez-nos dobrar cabos das tormentas, ser os primeiros a chegar aqui e dominar o Mundo durante algumas décadas. Ler isto nos livros de história cheira a mentira mas ver na primeira pessoa que os Da Silva dominam o negócio dos transportes no Sri Lanka, que há Fonsekas a torto e a direito depois de 500 anos de estarmos no Ceilão e que palavras como “sapato”, “vidro”, “armário” e tantas outras são de uso corrente não deixam margem para dúvidas. Uma roadtrip de 9 dias pela Taprobana (que mais tarde se tornou Ceilão e recentemente Sri Lanka), foi não so viajar por um canto dos Lusíadas como visitar uma ilha que durante 30 anos e até há oito meses atrás esteve em guerra civil e onde ainda não se conseguem conduzir mais do que 50 quilómetros sem um checkpoint para segurança ou tomar banho na praia sem ter um soldado a escoltar-nos de metralhadora em punho, com receio de que haja ainda Tigres Tamil à solta.
Ficou a cargo do Vee Jeh Singhe, nosso condutor de serviço (mais uma personagem de ficção saída de algum filme independente) mostrar-nos o outro lado do país, guiar-nos por Kandy, onde na Guesthouse Lake Bungalow encontrámos mobiliário português, pelo Grand Canyon de Sigaryia, pelas plantações de chá do Ceilão em Nuwara Ellia e Ella, levar-nos a um safari fiasco em Yala e conduzir uma noite inteira até à magnífica praia virgem em Trincomalle, onde repousámos magnânimamente durante três dias e a compensar-nos num safari em Pinawella onde vimos elefantes à séria. Depois de nove intensos dias na estrada ficou a vontade de voltar a um país que recomeça agora do zero mas onde a simpatia é certamente milenar, onde o soldado de metralhadora em punho sorri com a mesma ingenuidade do empregado do hotel, da mulher que manda na padaria e dos posters do presidente, que invadem agora todas as paredes que ainda parecem estar livres.
Setembro, últimos dias.
Regresso agora onde há dois meses começou esta jornada: Bombaim. Por um lado parece que foi ontem, por outro parece que foi há uma eternidade atrás. Foi uma viagem que mudou a minha vida, tal como todas as outras que fiz antes. De forma persistente, quase perturbadora, sinto a necessidade de sistematizar de que forma esta viagem me terá moldado. Mas o que me vem à cabeça não são sistematizações ou grandes revelações. Vejo as escadas do Mondegar e os paquistaneses a desembarcar em Chowpatti Beach antes dos ataques de Novembro, relembro os pobres e os miseráveis de Calcutá, os que esperam a morte no corredor de Kalighat e os putos a correr nos corredores da Daya Danh com a energia de quem não sabe que não há mais lugar nenhum para onde ir. Saboreio o menú do Olypub, o bolo de chocolate do Flurry, a fresca da Kingfisher sentado no páteo do hotel e a caldeirada de peixe que jantei no meu 29º aniversário em Goa. Sinto o cheiro dos combóios apinhados de gente e da comida que religiosamente às oito sai das mochilas das famílias que vão passar a noite a olhar lá para fora enquanto eu luto contra as insónias no beliche lá de cima. Ouço os sotaques do português nas aulas da universidade, as palmas dos milhares em Tarakeswar, os motores dos carros que escoltam o líder da oposição e as metralhadoras silenciosas no Sri Lanka. Relembro as horas que arruinei a discutir por menos de um euro viagens de riquexó, a estação suja de Barddhawan e os yogis que me serviram a comida dos deuses. Repito todas as respostas para as perguntas que tinha antes de vir, todas as novas perguntas que cá descobri e todas as palavras que no Ceilão soam a português. Sonho com a estória do Taj Mahal, com a vista dos terraços de Jaisalmer e com a praia de Trincomalle. Releio todos os livros magníficos que cá comprei, coloco-me na pele do Branson, do Obama, do Bin Laden e do Monge que vendeu o Ferrari. Olho para os cartões de visita das pessoas que aqui conheci, do negociante de automóveis que se tornou Cônsul Honorário, da professora que decidiu começar um curso de português na universidade em Calcutá, do Arindam que me afastou do chão sujo e revolvido da estação de Barddhawan, do G.P. e do Vee Jeh, do cozinheiro americano que conheci no autocarro a caminho de Colombo e que anda à volta do Mundo a trabalhar em restaurantes para aprender a cozinhar tudo o que há para aprender, do australiano que 95% das refeições só come fruta porque acredita que lhe dá paz de espírito ou da melhor amiga da dona da Guesthouse em Kandy, que vim a descobrir é sogra duma portuguesa que vive na Rua República da Bolívia, a 100 metros da minha casa.
Sistematizo tudo isto e o resultado é somente um sorriso do tamanho do Mundo.