domingo, agosto 09, 2009

Diário de Viagem - quarta semana

7 de Agosto, quarta semana.

Santa Unção.

As cartas e as fotografias penduradas na parede não me deixam mentir. Depois de estar há quase um mês em Calcutá resolvi finalmente aparecer. O ambiente é hostil e nos 100 metros quadrados abertos à minha frente, ninguém esboça um sorriso, camas dum lado e de outro encarquilham-se num corredor onde dificilmente passa mais de uma pessoa. Cheira a morte. Estou finalmente em Kalighat, na casa dos que esperam a morte e dos desafortunados, onde em 1955 o Missionaries of Charity da Madre Teresa começou. As cartas do Vaticano e as fotografias com a visita do Papa em 1977 não me deixam mentir. É uma casa sem emoção, parece um filme em pause still. O contraste com Daya Dahn, onde acompanhei miúdos deficientes durante 3 semanas, embora um filme que terá um desfecho semelhante, é evidente: onde lá há cor aqui há paredes frias, onde lá se ouvem gritos de crianças extasiadas aqui ouve-se a tosse dum tuberculoso que se encosta ali no canto. Onde lá há vida em todos os corredores, aqui a vida corre a conta-gotas, como naquele tubo de soro. Era aqui que inicialmente tinha pensado em ser voluntário. Um misto de medo e cobardia impediu-o. Foi um chuto claro para a defesa, para que a estória recente do velhote que morreu nas mãos dum voluntário enquanto lhe dava banho ou do outro que foi à casa de banho e não mais voltou não se repetisse comigo. Mas a verdade é que a curiosidade acabou por me consumir ao ponto de me trazer aqui no meu último dia, para que as pazes com a minha consciência se consagrassem e a missão em que vim recebesse a santa unção.

Longa metragem.

Calcutá fica agora para trás. Depois de quase um mês aqui, definitivo sentimento de missão cumprida. Uma experiência de voluntariado era uma ideia que já vinha a amadurecer há algum tempo e, como já tinha acontecido antes, fui à procura das condições para a colocar em prática. Em um mês não se muda o Mundo mas começa-se a mudá-lo. É um mês difícil de descrever: ver ao vivo e a cores aquilo que estamos habituados apenas a ler ou ver nas notícias, ter mais próxima do que queria a noção de que a vida é um rastilho que se consome ao segundo e que o dia de amanhã só em parte depende de nós, foi bater com a cabeça numa dura parede de fragilidades. Foram quase trinta dias de intensa reflexão, o que foi facilitado pelo facto de esta ter sido uma aventura solitária. E não teria feito sentido ser doutra forma. Ao contrário duma viagem em que é bom ter alguém com quem partilhar o que se vê, esta não era uma experiência ao som de brindes de cerveja, de saídas à noite e de incursões de shopping. É antes um retiro em que é preciso tempo para absorver o que se vê, para se comover à vontade e para re-alinhar realidades e virtualismos. No fundo, uma experiência em que cada um encontra nela um sentido próprio e individualizado. Não tenho planos para o futuro próximo, mas sinto que aqui terminou apenas a primeira parte duma longa metragem em que seguramente há ainda muito por rodar. Embora trivial, a crua verdade é que a grande maioria de nós pensou já em fazer trabalho de voluntariado aqui e ali, mas insistimos em desculparmo-nos com as inconvenientes circunstâncias da vida para o adiarmos, usando de quando em vez um pouco de caridade para serenar as angústias que nos consomem quando vemos um pobre ou um deficiente na rua ou usando a oração da noite para pedir-Lhe que acorra em seu auxílio. Tal como a matemática, geografia ou história, a disciplina de voluntariado, num sistema escolar progressivo, deveria ser obrigatória. Nem tanto pelo contributo social mas antes pela destruição dos ambientes assépticos e alienados da realidade, em que nos habituámos a viver.

Calcutá, posso dizê-lo agora, é a minha terceira casa, depois de Lisboa e Shanghai. Houve tempo para tudo, para fazer bons amigos, assistir a concertos de Serod e ainda a palestras com laureados Nobel, comer excelente comida e por as leituras em dia. Fica a promessa de um dia regressar. E a realização de que, pelo menos durante um mês, não levei um vida estúpida e inconsequente.

A cor dos Deuses.

“Who am I?...Who am I?... Who am I?...” eram os únicos sopros que ía ententendo no meio daquele emaranhado de Bengali, enquanto com as duas mãos segurava a folha seca de onde ia tirando os pedaços de Prasad e olhava para ele, com a reverência com que se olha para alguém importante.

5 horas da tarde e entro no combóio que liga Santi Niketan a Barddhawan. São 50 minutos de viagem e 5 horas que me esperam na estação até que às 22h chegue o combóio que em 12 horas me levará a Varanasi. Tinha ido a Santi Niketan ver a universidade - uma das mais vanguardistas de todo o Mundo - e encontrar-me com o Dr. Amrati Sen, respeitado professor do Departamento de Inglês e de quem tinha a referência. Depois de bater a quase todas as portas da vila finalmente encontrei a sua mas parece que tinha ido a Darjeeling para um seminário. Deslocação em vão, pensei eu, enquanto olho por cima dos ombros dos tipos que estão à minha frente e procuro um lugar no combóio para me sentar. Andar num combóio na Índia é uma experiência surreal e tentar encontrar um lugar vago mais surreal ainda. Acabo por colocar as duas mochilas que trago encostadas ao corredor de entrada e a pensar em como disfrutar dos 50 minutos que se aproximam. “Não fales com ninguém, não aceites comida de ninguém” são os conselhos que trago dos amigos de Calcutá e ao que parece a forma segura de evitar roubos desnecessários por envenenamento. Claramente contradições em que se envolve a espiritualidade extrema deste povo, mas dada a densidade do tópico, não me apetece reflectir. Esta vinda a Shanti Niketan tinha sido em toda a extensão um erro, mais não fosse pelas cinco horas que ia ter de esperar na estação em Barddhawan. Ainda a factualidade crua do conselho me passeava pela cabeça quando alguém me toca no ombro. “Fazeres a viagem aqui não vai ser muito confortável. Tenho algum espaço ali junto ao meu banco, podes trazer as mochilas e colocá-las lá. Acompanha-me”, disse-me o estranho. Ao princípio neguei, alarmado pela temporalidade pertinente do conselho, mas perante a insistência cedi. Lá pus as malas em cima dum banco meio desocupado, negando o convite a sentar-me para assegurar a defesa do meu capital. O tipo, diria duns 25 anos, inglês impecável - o que começa a ser raro nesta zona - tinha uma conversa simpática. Depois das apresentações feitas, de me dizer que era de Barddhawan e que estava ali com o pai (um velhote com ar tenso sentado à minha frente) de regresso a casa, ainda tentou oferecer-me comida, oferta que simpatica e exaustivamente declinei. Exceptuando a figura do pai, todo o enredo ia batendo certo com o dum eventual envenenamento premeditado e fui jogando na defesa. Mas na verdade, à medida que o tempo foi passando e a conversa ia fluindo, e fruto de uma alguma ingenuidade minha que creio agora nunca desaparecerá e duma incapacidade crónica de chutar o risco à primeira em troca de uma boa estória, fui relaxando. A viagem terminou com o convite para durante as cinco horas que tinha o acompanhar a uma viagem rápida de reconhecimento à sua cidade. Esta vinda a Shanti Niketan teria sido em toda a extensão negligenciável, não tivesse eu cedido.

O peso excessivo das malas que trazia não iria tornar o percurso fácil e pergunto-lhe se há algum sítio onde as deixar. Depois de um telefonema rápido diz-me que vamos a casa dum amigo e que lá posso deixar a bagagem. Meia hora de riquexó e chegamos finalmente. À porta recebe-nos o amigo - um tipo imberbe mas com ar “sabido” - que acompanhado pelo irmão nos escolta até ao segundo andar da casa. Umas escadas sombrias, mal construídas, levam-me a um corredor escuro com paredes por pintar e ao longe finalmente um quarto a meia-luz. Aproximo-me e vejo ao fundo vultos em movimento. Ele pede-me que entre no quarto para deixar as malas e assim fiz. Lá dentro, sentados em cima duma cama, conto sete pessoas que me dão as boas vindas à boa maneira indiana, com as duas mãos juntas, juntas ao peito, em forma de reza. O pai, um velhote que me faz lembrar o Ghandi, olha pela janela, observando aquilo que parece ser o movimento ordeiro de regresso a casa no final do dia enquanto a mãe, a tia, a irmã e os três irmãos assistem à novela. Apressam-se rapidamente a convidar-me para sentar, enquanto servem um sandesh e um copo de tchai (chá com leite e especiarias). A casa é modesta mas a hospitalidade que dali emana rapidamente a transformou num potencial hotel de luxo. Estão interessados em saber o que um português faz por ali, como nos conhecemos, e sendo amigo dum amigo da casa, rapidamente tenho o irmão mais novo a querer tirar fotografias, a tia a oferecer mais chá e a irmã mais nova que entretanto espreita pela fresta da porta para ver quem é o desconhecido. Termino o meu chá e juntamente com o meu amigo de circunstância lá descemos para a caminhada de final de tarde.

Foi essencialmente uma espectacular excursão aos principais templos de Barddhawan: vi o Rama, o Krishnha, o Hanuman (Deus Macaco), o Vishna, o Maasarbamangala, fui iniciado nos rituais da água sagrada e da pinta na cabeça, do ajoelhar no chão, do bater com a cabeça e de pedir um desejo, fui abençoado pelos sacerdotes e feiticeiros. Templos em antigos palácios, estátuas de todas as cores, dourados, azuis, rosas e laranjas que se espalham por um espaço místico e que me fazem agora acreditar que a religião não é afinal uma coisa de pessoas sisudas e de sermões, de beatas de preto e branco ou de fundamentalistas de missa domingueira que na segunda feira já esqueceram o que o padre pregou no dia anterior. Tento absorver o mais que posso, faço perguntas e tento dar as respostas mas no meio de tudo isto ainda não consigo compreender a razão de estar aqui. Na visão ocidentalizada do Mundo em que crescemos, embora não seja algo de que me orgulhe, procuro na cabeça dele o motivo explícito para me estar a acompanhar com toda aquela satisfação. Não é que eu ache que não merecesse este tratamento (aliás, não tinha feito nada até ali para o desmerecer) mas meia dúzia de indicações na estação com um mapa seriam suficientes para orientar um estrangeiro em Barddhawan. Creio que teria sido isso que eu teria feito. Com o mesmo espírito que aceitei o convite dirigi, assumindo em pleno o risco, a pergunta: “Tenho de te agradecer a magnífica hospitalidade, transformaste uma tarde perdida na estação num roteiro espiritual magnífico. Mas daquilo que percebi o teu pai queria-te em casa cedo, tás sem trabalho, conheceste-me faz um par de horas mas, no entanto, aqui continuas como se fôssemos melhores amigos da escola ou alguém a quem deves um favor. Posso perguntar-te porquê?”.
A forma seca e desprovida de sentimento com que a coloquei fê-lo parar de andar, bem no meio da estrada. Mas rapidamente, como se a secura fosse agora uma forma de competição, respondeu: “Vocês ocidentais têm dificuldade em perceber a espiritualidade. Nós hindús veneramos 36 mil deuses e um deles é a alma, a tua, a daquele vendedor, a do professor que cumprimentei há pouco. Ao estar a acompanhar-te estou a prestar tributo aos Deuses. A cor, o país, a religião da pessoa não importa. Se eu fizer o bem, receberei o bem, e isso é suficiente para mim”. Embora em vias de extinção, esta visão inclusiva, ingénua e espiritual do Mundo tem aqui um seguidor. No meio da merda em que todos os dias nos atolamos, da corrupção dos vizinhos, da decadência dos sentimentos e das relações falsificadas, da cor do dinheiro, da idolatria, da fisicalidade do espírito e da futilidade da vida, aqui em Barddhawan, cidade que nem tem lugar nos guias mas onde há uma suja estação de comboio, aprendi mais uma lição de pura e simples humildade.

O sol já há vários quinze minutos desceu atrás do Hindu Gourjamath. Entramos agora pelos portões, eu meio atordoado a tentar encontrar a sala donde vêm a voz do guru, ele a cumprimentar um yogi, amigo de infância. Encontro finalmente a ante-câmara onde muita gente, sentada no chão de perna cruzada, ouve os ensinamentos do Swami Chinmayananda - aquele que aprendeu tudo, os dentros e foras da mente - sobre o bem e sobre o mal. Do alto da sua barba e cabelo compridos e da sua túnica laranja, emana a sabedoria secular de quem demorou 21 anos a decorar as sagradas escrituras. Depois de sentados cinco minutos a ouvir levantamo-nos, com a discrição que me é possível sendo o único estrangeiro na sala e, até ver, na cidade. O relógio badalou imaginariamente as oito horas quando o Arindam me puxa para dentro da entrada da casa onde vivem todos os yogis, homens que em nome da sua religião, se despiram de todos os bens materias e prazeres terrenos para se dedicarem solenamente ao serviço dos deuses e da comunidade. Servem os pobres, os doentes e os oprimidos. Os dias, quando não de trabalho comunitário, são de meditação, para que a paz interior fortaleça a sua convicção. Aos mais novos cabe-lhes a árdua tarefa de ir mendigar para a rua, não com o objectivo de obterem receitas, mas simplesmente de experienciarem a crua rejeição dum pobre e deixarem para trás e para sempre o seu leviano ego.

Depois de um discurso de dez minutos e concluída a tradução, finalmente entendo. Enquanto seguro com as duas mãos a folha seca que contém a comida dos deuses, olho para ele com a reverência de quem olha para alguém importante, e percebo agora que o que levou o homem que está mesmo à minha frente a tornar-se yogi foi o mesmo role de perguntas metafísicas que todos nós, cada um no seu tempo e com a sua profundidade, se coloca. “Who am I ?”. Serei eu o espírito ou o corpo emprestado que o carrega e que observo de manhã ao espelho? De onde venho e para onde vou? Estamos nós destinados a nascer, crescer e morrer ou pode a nossa passagem perpetuar-se em alguma coisa? O Swami Chinmayananda encontrou aqui as respostas para as suas perguntas. Ao meu lado senta-se aquele que de circunstancial passa agora a amigo - Arindam Pal - e que venho a saber que só por força do pai - que vê no filho único o sustento da família - não chegou ao final do caminho para se tornar um yogi e para também ele poder debaixo deste mesmo tecto encontrar as respostas às perguntas que o inquietam.

A tarde vai longa. Regresso para ir buscar as malas, para mais um chá e uns bolos secos, para uma sessão de fotos e de perguntas e para um adeus sentido do irmão mais novo, que corre agora à janela para ver o riquexó sair e não mais voltar. Tudo levaria a pensar que estaria agora sentado no chão sujo da estação à espera do comboio e a lamentar a minha ida ostensiva a Santi Niketan, mas não. Quis a negação da teoria do envenenamento premeditado, a crença impregnada dos 36 mil deuses e o corredor sombrio onde deixei a mala que o chão da estação continuasse sujo e revolvido. Eu e o Arindam terminamos o início da noite à mesa dum restaurante, no andar de cima do hotel da rua principal, a tentar responder a algumas perguntas que só alguém que não renunciou a todos os prazeres terrenos continua a perguntar. Bem de cima do meu ego tiro quatro notas da carteira e de forma crua sacudo-as em cima da conta que acabaram de trazer. Em Barddhawan, quis eu que a cor do dinheiro fosse ao final do dia legimitada na retribuição do bem.

sábado, agosto 01, 2009

Diário de Viagem - terceira semana

31 de Julho, terceira semana.

Gourmet.

Sou maluco por comida. Já o sabia há muito tempo mas nada como uma nova amostra para o reconfirmar. Medicamente falando o diagnóstico não será fácil pela multiplicidade de sintomas mas arrisco-me a entrar em território que não domino e dizer que sou uma forma de hiperactivo gastronómico, um crónico do chocolate, um tetraplégico das jantaradas, um maníaco-depressivo dos cozinhados da mãe e um epiléptico das coisas boas. Depois de mais de dois anos de sofrimento na China - onde cada refeição é para mim um sacrifício e onde cheguei a pensar que estava para sempre curado - voltei na Índia a sentir delírios gastronómicos e a reafirmar a minha convicta loucura. Voltei a pensar em comida mais de vinte vezes por dia, a decidir à hora de almoço o que me apetece comer ao jantar, a perder mais de meia-hora a decidir a que restaurante vou, a dar gorgetas ao cozinheiro e a dormir por quatro euros para poder financiar almoços e jantares a dez. Seja especialidades de Goa, do Rajastão ou de Bengala, seja Tikka, Massala ou Tandoori, demore uma hora a cozinhar ou me custe os olhos da cara, o importante é que seja em quantidade generosa e esteja apurado de tempero.
Andar pelas ruas de Calcutá é um convite explícito a espasmos gastronómicos: as cores do açafrão e da lima pendurada nos carros dos vendedores ambulantes, o basmati a retintar na panela, o cheiro do caril de côco, os bolos a fritar, o naan a sair do forno e o tipo que insistentemente convida a sentar. Na recta final da minha estadia em Calcutá e ainda antes de partir sinto já falta da comida pujante do Rajastão no Peter Cat, das especialidades vegetarianas do Teej, da galinha e da comida sino-indiana do B-B-Q, dos bolos de chocolate do Flurry, do caril do 6 Balligunge Place (onde vim a descobrir que uma das especialidades locais é um peixe que dá pelo nome de Rui e onde sempre que lá vou o viciante gelado de cajú com bolacha é por conta da casa) e do cantinho do Olypub que reconfirma a teoria universal de que quanto mais tasca menos rasca.
Sou maluco por comida. Medicamente falando o diagnóstico não será fácil pela multiplicidade de sintomas mas arrisco-me a entrar em território que não domino e a dizer que não tem cura.

Javadpur University.

Tudo tem um início. A Patrícia apresentou-me virtualmente ao Dr. Freitas Ferraz que me pôs em contacto com o Embaixador de Portugal em Nova Delhi, que me encaminhou para o Mr. Ravi Poddar, que por intermédio do Anup me fez chegar à Obra da Madre Teresa. Simultaneamente, através do ciber-espaço e noutro escadear de contactos informais, cheguei ao contacto com a Sandra (que não conheço nem nunca vi) que me cedeu o contacto da Rita, que por sua vez é amiga de longa data do Anup. Viajar não é mais do que um encruzilhado de surpresas e aqui estou eu em Javadpur University, convidado pela Rita - local de passaporte mas apaixonada por Portugal, onde estudou e viveu - para vir conhecer uma das suas turmas de português e para contribuir com aquilo que a minha experiência lusófona me deixar. Encontrar em Calcutá alunas de português de Portugal foi para mim uma surpresa em toda a linha, e mais surpreendente ainda foi ouvi-las falar de Fado, da Amália e da Marisa, dos Lusíadas que leram em versão traduzida, da saudade e do desenrascanso, da bica, do pastel de nata e da RTP, do Cavaco e do Álvaro Cunhal, com um entusiasmo e um romantismo que contagia, e com a esperança de conhecerem um dia o mesmo país donde há 500 anos saiu o Vasco da Gama. Viajar não é mais do que um entrelaçado de surpresas e aqui estou eu em Javadpur University a saber que se está a trabalhar num projecto para em 2012 se abrir um restaurante português em Calcutá, ao mesmo tempo que em cima da mesa descansa o CD de fados cantado e gravado pelas próprias e que gentilmente me ofereceram.

Viajar não é mais do que um emaranhado de supresas e aqui estou eu a descer as escadas de Javadpur University e a constatar que o Português não é só dos portugueses, é também das turmas de Calcutá e do resto do mundo, das praias de Goa, do nome de Bombaim, do Mr. Ravi e do Anup, lá em baixo do Sri Lanka, dos casinos de Macau, das fortalezas de África e do Cabo da Boa Esperança, dos fiipinos que enterraram o Fernão de Magalhães, das Caraíbas e do Samba do Brasil. É ainda dos “kopos” e dos “hirumanos” no Japão, do pastel de nata na China e dos Sequeira, dos da Silva e dos Fernandes do Industão. E, porque não, de todos aqueles de cuja língua se vê o mar.

Leituras.

Além do recorde pessoal de mais fatias de bolo de chocolate numa semana que foi batido há uns dias, preparo-me também para bater o recorde pessoal de livros lidos em 7 dias: nada mais nada menos que quatro. O tempo disponível e o ambiente propiciam o feito. Tentei aliar a qualidade à quantidade e comprar títulos que façam sentido neste tempo e neste espaço. Comecei com O banqueiro dos pobres, um livro sobre o micro-crédito iniciado pelo Banco Grameen na pessoa de Muhammad Yunus (Prémio Nobel da Paz) e que aqui já ao lado, no Bangladesh, tirou da pobreza milhões de pessoas, lutando contra fortes barreiras culturais e religiosas. Tudo começou com um empréstimo de 22 cêntimos a uma mulher que por conta doutrém produzia cestas de bambú e que com este apoio se tornou micro-empresária. Parte da estória passa-se em Calcutá o que lhe confere uma mística particular mas acima de tudo é um exemplo inspirador que deixa a certeza de que a pobreza pode ser irradicada do planeta, sem recurso à caridade. Assim haja vontade. Seguiu-se o Business Stripped Bare do Richard Branson, fundador da Virgin, e que é uma mistura de auto-biografia com lições de vida e estórias mirambulantes daquele que para mim é o maior gurú do empreendedorismo, que começou a vender CDs aos 19 anos e que aos 60 se prepara para colocar em órbita a primeira nave espacial tripulada. Um magnífico livro, a reler, e que numa altura em que estou desempregado me faz pensar se o passo certo é continuar a trabalhar para encher os bolsos a terceiros que já os têm a transbordar ou se a decisão correcta não seria começar a encher os meus. Nas entrelinhas é também um reafirmar de que viver significa assumir riscos e cometer loucuras porque “the brave may not live forever but the cautious do not live at all”. Há dois dias comecei o Hug your people, um daqueles livros de gestão bem americanos sobre como criar uma equipa vencedora, baseado em técnicas de motivação e inspiração. É um livro de mesa de cabeceira mas em todo o caso ajuda a distinguir um mau dum bom ambiente de trabalho. Agora a meio vai o Inside Al-Qaeda, um livro escrito por um investigador que teve contacto directo com centenas de membros da organização e que neste livro deixa a nú a essência de Bin Laden e todas as tácticas e estratégias desta que é apelidada a Rede Global do Terror. Estando na Índia, entrincheirado entre dois países que albergam células terroristas (Paquistão e Bangladesh) pareceu-me um bom livro para adormecer.