segunda-feira, julho 27, 2009

Diário de Viagem - dia 17

26 de Julho, dia 17.

7 e 45 da manhã e toca o telefone. É o sobrinho do Mr. Ravi a adiar para as 10h30 o que estava previsto acontecer às 9h30. Não foi propriamente mais uma hora de sono porque preferi apostar no english breakfast do Flurry’s ali em Park Street. Tornei-me na última semana um habitué do local que é aqui em Calcutá (cidade conhecida também pela boa doçaria) um local sagrado para os crentes na religião da chocolateria de bom nível. É o meu caso, levo o ritual a sério e, qual extremista, depois do almoço passo lá sempre para fazer assentar o repasto e digerir um livro. Segui dali para o Bengal Taj Hotel, onde me tinham pedido que esperasse pelo Mr. Ravi. Cheguei um pouco mais cedo e na hora prevista compareceu o anfitrião da visita que se ia seguir, acompanhado do sobrinho e de, presumo eu agora, um amigo dele.

‘Rui, bom dia, que tal Calcutá depois de uma semana? E o trabalho corre bem?’, pergunta-me ele.
‘Até agora não podia estar a correr melhor, depois de um ou dois dias de habituação, já me sinto em casa’, digo-lhe eu. Em tom de brincadeira lá me diz que muitas das pessoas deslocalizadas pela empresa para cá se sentem azaradas no início mas acabam por não querer voltar. ‘Há qualquer coisa especial nesta cidade de facto’, leva-me a concordar. Nisto chega um jeep da polícia e outro à civil. ‘Vamos’, diz o Mr. Ravi. ‘O meu amigo chegou!’. Já sabia ao que ía, só desconhecia a amplitude do arranjo. Sai do carro um homem nos seus sessentas, bem vestido - com uma túnica azul, calça branca e sandália distinta -, cabelo puxado para trás e óculos demodé. Tinha acabado de ser apresentado ao líder da oposição de Calcutá, que ao que parece anda em conversações com o congresso local para uma aliança que destrone a já antiga maioria comunista. Apressou-se a entrar no carro e eu, juntamente com o sobrinho e o amigo entrámos num Toyota branco, impecavelmente limpo, com ar condicionado - luxo que ainda não tinha sentido em Calcutá - e um Alpine que pelas colunas de trás explodia um beat cool, bem indiano. À frente o motorista.

A viagem que normalmente demoraria 2 horas, levou-nos apenas 1 hora a percorrer. Os limites de velocidade foram escrupulosamente cumpridos mas o facto de termos um carro batedor da polícia a escoltar-nos - dada a personalidade que ali ía - tornou as coisas bem mais rápidas. Íamos a caminho de Tarakeswar, local sagrado dedicado ao Deus Shiva e onde todos os ‘mês 5’ do calendário hindú (o mês de Julho para nós) de cada ano, milhares de fiéis de todas as proveniências aqui vêm para prestar divino tributo. O rito é simples: cada fiel transporta aos ombros dois potes cheios de água proveniente do Ganges (o rio sagrado para os hindús, que nasce nos Himalaias), cada um deles preso às extremidades de uma cana de bambú e decorado com panos coloridos, flores e todo o tipo de ornamentos que se possa imaginar. Vão em direcção a Tarakeswar, local onde está o templo e onde deverá ser vertida a água. Em procissão vai também um cortejo alegórico com figuras de deuses que, embora longe dos 36 mil existentes para os hindús (há inclusivamente um Deus dos livros, porque como faz questão de clarificar o Rishabh e eu concordo, faz todo o sentido que o conhecimento seja deificado) é suficiente para fazer parecer isto um desfile de carnaval. São milhares de pessoas que vamos encontrando ao longo destes 80 km que estamos a percorrer, entremeados por estações onde se pode parar para refrescar e descansar. É um festival de cor impressionante, e uma espiritualidade que contagia. Há velhos, novos, ricos e pobres, descalços, doentes, deficientes, mas nestas diferenças reforça-se a união. Distante da penitência e do sofrimento patentes na peregrinação a Fátima, esta festa inspira em mim um tipo de sentimento muito diferente.

Chegamos finalmente, não ao templo como eu contava, mas a uma das grandes estações de paragem, da qual o Mr. Ravi é o presidente e, julgo eu, o mecenas. É um local inexplicável: milhares de pessoas, deitadas no chão e onde abrigadas do sol dormem o que podem, outras esperam junto à porta do refeitório onde lhes será servido gratuitamente a refeição do meio dia (e onde mais tarde, para delírio da multidão, me juntei de pernas cruzadas em cima do muro de cimento para com as mãos partilhar o mesmo almoço), algumas vertem copos de água uns atrás dos outros e salpicam os amigos, vendedores ambulantes, polícia à mistura, caminhos elameados, dois templos (onde houve ainda tempo para ser abençoado pelo “feiticeiro” de serviço), uma voz insistente que dum microfone longínquo faz ecoar nas colunas espalhadas pelo local as orações do momento e uma comitiva presumo eu de colonáveis que, junto ao Mr. Ravi nos guiam pelo recinto. Estava a achar estranho a cerimonialidade com que me tratavam (embora um convidado e único estrangeiro ali, estava a achar demasiado cerimonioso), enviando-me sempre para a linha da frente da comitiva, dando-me os melhores lugares para me sentar, apresentando-me a todos os distintos convidados. Tudo se clarificou no entanto no segundo exacto em que ouço o meu nome soar nas colunas (atravancado no meio de palavras indecifráveis das quais percebi ‘Portugal’) e vejo uma das personalidades movimentar-se até mim para, com uma vénia e com um juntar de mãos, inesperadamente e de forma gentil me medalhar com um colar de pérolas e flores. Não mais o tirei. Era agora claro não só para mim como para os milhares de pessoas que ali estavam que, juntamente com o outro tipo que por acaso era o líder da oposição, aquele mal amanhado português de barba por fazer, t-shirt branca e calças de pano era o convidado de honra. Mais não pararam de soar as palmas por onde quer que eu passasse, gesto a que eu sempre que possível (e incentivado pelo Mr. Ravi) respondia com um sorriso sincero e com um aceno de mão. Foi certamente o mais próximo que estive de me sentir uma rockstar, pelo que esta viagem além de tudo o mais encerra também o meu direito legítimo aos cinco minutos de fama a que todos, estou a crer, temos um dia direito.

São 3 da tarde e depois das despedidas regressamos a Calcutá. O ar condicionado que está agora no máximo ajuda a refrear a legítima excitação que este final de manhã e príncipio de tarde me proporcionou, enquanto lá fora os peregrinos, em sentido contrário e ainda longe da próxima estação, fatigados pela carga mas inabaláveis na crença, aguardam já pela sombra que mais adiante irão encontrar. Para mim seguramente transcendente, esta sucessão (quase perfeita) de escolhas fortuitas, de ligações, de sentimentos e de locais, de conhecidos e desconhecidos e de segundos que não poderiam ter sido outros, vai rastilhando esta sucessão de acontecimentos incríveis e de estórias para contar com que este país decidiu presentear-me.

Diário de Viagem - semana 2

25 de Julho, segunda semana.

Calcutá, a cidade onde o tempo parou.

Fez terça-feira uma semana que aterrei em Calcutá. Depois do abalo inicial de chegar a uma cidade que parece que parou no tempo e que duvido alguma vez vá avançar, onde se dorme na rua apesar de os hotéis estarem a meia dúzia de tostões, onde homens puxam carroças mas há metro, onde se come com as mão porque sabe melhor e onde crianças morrem por não as lavarem, onde as vacas são sagradas e entopem o trânsito, onde todas as cores são possíveis, onde cheira a cozinhados da mãe em todas as esquinas, onde se esconde o Vasco da Gama, onde se toma banho na rua, onde o povo é sujo mas bonito, onde muçulmanos, cristãos, budistas, hindus e ateus vivem em paz e onde o partido comunista manda, onde há lixo que nunca mais acaba e não há onde por o lixo, onde abanar a cabeça para a esquerda e para a direita significa “sim” e “não”, onde se come por um euro e muita gente morre sem alimento e onde se discute filosofia na rua, sinto-me quase em casa. Há cidades que nasceram para ser degradadas, degradantes e paradoxais, mas é exactamente esse traço que lhes transmite o carisma e a imperfeição de onde advém toda esta energia.

O poder da mente.

Calcutá será eternamente a cidade onde me iniciei na meditação. O Gautam convidou-me para uma sessão domingueira lá para “trás do sol posto” e, empolgado, lá me juntei. Já há três anos que ele, todos os domingos, religiosamente lá vai. Diz-me que se sente outro agora, com uma paz de espírito transcendental. Já fez um ou dois cursos de introdução à cura prânica, também conhecida como ayurvédica, que resumindo e baralhando significa curar doenças através da meditação, sem qualquer recurso ao toque ou a medicação. Diz que agora consegue curar gripes com duas meias horas de meditação. Embora tendencialmente céptico na filosofia transcendental, sou um convicto no poder da mente e por certo este treino levará a qualquer lado. A primeira experiência para mim, tenho de admitir, foi um tanto ou quanto desmotivante. Foi meia hora com os olhos fechados onde me pediram que tentasse imaginar o planeta Terra a rodar à minha frente e que o agarasse com as mãos, que visionasse ora a chama do meu coração ora uma coroa em cima da minha cabeça ao mesmo tempo que inspirava e expirava de seis em seis segundos e entoava um “ohhhmmmmm” prolongado. Nos entretantos a voz do mestre, ao som duma musiquinha étnica, ia-nos dando instruções. Quando abri os olhos, meio ensonado, sem ver coração nem coroa, e ainda só a vislumbrar a ponta esquerda do pólo norte e a figura do Ramakrishna à minha frente, reparei em meia dúzia de tipos que claramente se teriam transcendido, tal era o esbugalhado dos olhos e a cara extasiada dos meninos. Ao ver este cenário, a única coisa que me deixou mais tranquilo foi saber que a meditação é um processo de aprendizagem longo, que pode levar anos. Ao atingir-se esse nível - ao qual só se chega quando conseguimos por a mente a pensar em nada, ficando totalmente vazia - entra-se num estado de tranquilidade superior ao do sono, conseguindo-se a superação mental a que chamo transcendência. Meia hora disto, de manhã e à noite corresponde grosso modo a quatro horas de sono, a uma vida mais saudável, a um sistema imunitário de leão e a uma tranquilidade que, daquilo que vi, move planetas.


Bauddha Dharmankur Sabha.

Não vim em busca espiritual à Índia, confesso. Mas entendo porque haja quem o faça. É impossível ir onde quer que seja sem que um gesto de religiosidade se manifeste. Cânticos que ecoam das mesquitas ao final da tarde, velhotes que se benzem no rio, mulheres de pinta na testa, missionários católicos, monges budistas, empregados de restaurante que levam a mão à boca e à testa quando uma moeda cai no chão. Depois de meia dúzia de dias a pagar muito por um quarto manhoso e um colchão a cheirar a mijo, a financiar agiotas e a enriquecer empresários que pouco sabem sobre serviço ao cliente, deixei que a espiritualidade própria da cidade me invadisse e optei por me mudar para um sítio onde sabia que não seria aldrabado, onde posso deixar a porta destrancada e onde o buzinar de Sudder Street e a legião estrangeira ficam longe - para o Bauddha Dharmankur Sabha, a Associação Budista cá do sítio. Aluguei um quarto no primeiro andar a quatro euros por noite, com vista para a gigante estátua do Buddha que está lá em baixo, onde sou cumprimentado por monges à entrada e à saída e onde acordo às cinco e meia da manhã com cânticos no terraço. São instalações comedidas e humildes mas limpas, onde o ambiente é tranquilo e místico, escondidas num bairro castiço, propícias à introspecção.

AD-HD.

Fez hoje (sexta-feira) uma semana desde que comecei a trabalhar como voluntário para o Missionaries of Charity, missão fundada pela Madre Teresa na década de 50. O trabalho que tem sido feito ao longo dos anos é, honra lhe seja feita, impressionante: compaixão e dignidade são hoje palavras de uso corrente não só em Calcutá como noutras cidades onde a missão se instalou. Muitas mulheres fizeram o voto de castidade, deixaram tudo para trás e dedicam a sua vida a cuidar dos pobres, dos doentes e dos moribundos, porque também estes são filhos de Deus. Como excelente fenómeno de marketing que a Ordem da Madre Teresa se tornou ao longo dos anos, a oferta de voluntários excede claramente a procura - aliás, todos os centros foram planeados por forma a que as pessoas contratadas que lá trabalham sejam suficientes para garantir o seu funcionamente em pleno - o que leva a que o isto seja visto como um privilégio para o voluntário - alguns em busca de uma linha bonita no currículo que lhes dará o primeiro emprego quando regressaram e casa - mais do que para a Ordem. Intenções à parte, nesta semana lavei, sequei e recolhi mais roupa que em toda a minha vida, aprendi a dar de comer a putos que fazem birra (e com razão!) porque andam há um ano a comer o mesmo arroz com vegetais ao almoço e ao jantar, ajudei a vestir mais crianças do que a maioria das pessoas que conheço, limpei mais cús do que gostaria, mudei umas mil camas de lavado como se fosse faxineira de hotel e pús miúdos a dormir com a insistência com que tentava terminar os jogos de computador quando era pequeno. Faço tudo aquilo que sentado numa cadeira de escritório nunca teria tido oportunidade de fazer, sinto mais do que nunca que trabalho e giro lucro para quem dele precisa, sinto-me recompensado por isso e durmo bem. Esta semana foi também a semana em que concluí que as teorias económicas do Adam Smith e os modelos econométricos que se ensinam na escola não se aplicam, onde a realidade vive longe dos mapas de Excel e das apresentações idiotas de Powerpoint, alienada das palhaçadas do management, do variable pay, dos fringe benefits ou da fofoca dos corredores. Onde o mundo real, onde vive a maioria, é o da espera cruel pelo dia de amanhã e não o do subprime, do credit crunch ou da morte do King of Pop. Onde as pessoas não esperam pelo episódio da novela de amanhã, pelo replay do pontapé do Marco do Big Brother ou do coleccionável que sai com a próxima Caras. Onde os putos não estão à espera do último filme da Disney, a chamar nomes à empregada da escola ou a recarregar a PSP.

Attention Deficit - Hiperactivity Disorder, vulgo hiper-actividade, é a vertente em que me tenho vindo a especializar. A alguns dos voluntários foi designada uma criança para acompanharem durante o dia, particularmente na altura do estudo, onde os mais espeditos aprendem a ler, escrever e alguns dotes artísticos, como seja o tocar um instrumento ou aprender a desenhar. A madre superior deve ter lido na minha cara que eu vinha à procura de trabalho e deu-me a “custódia” do Ankur, O HIPERACTIVO. Qual guerreiro mongol, o filho da mãe - não deve ter mais de 8 anos - não pára 5 segundos quieto: ora manda pontapés em qualquer coisa que mexe, ora desata a correr, ora mete cola à boca, ora começa a chorar, ora desaparece, ora liga a mangueira e começa a molhar toda a gente, ora não dorme quando tem de dormir ora mija em qualquer canto. E o mais impressionante (o tipo é rápido) faz tudo isto em menos de dez minutos. Porque nada é servido de bandeja, sofre de deficiência - auditiva e mental - e ainda de epilepsia. O dia começa para ele às 9 horas como uma sessão de meditação (meditação, era bom era...), onde numa sala escura se ouvem umas músicas de luz apagada e segue-se meia hora de estudo. Veja-se bem o calibre do menino, construiram uma espécie de cela prisional onde me fecho com ele para lhe dar aula. Escusado será dizer que a bem da segurança apenas inclui uma cadeira e aí uns 4 metros quadrados para não dar azo a grandes ideias. Contra todas as expectativas, têm sido trinta minutos abençoados e ainda não causou distúrbios de maior, já aprendeu a escrever o meu nome e a desenhar um barco e uma estrela. Cheio de orgulho, lá lhe vou abrindo a “cela” todos os dez minutos para ele correr até às irmãs a mostrar o que anda a aprender.


Além de tudo isto, tenho re-descoberto em Calcutá as virtudes de se voltar a ter tempo para deambular, num fazer-nada desplicente e o pior é que estou a gostar. Perco tempo a visitar restaurantes, a dar voltas ao parque à procura de alguém que queira dar uns toques na bola, a entrar em bairros e vielas sem um propósito, a ler sobre o Sri Ramakrishna e a arte da meditação e a inteirar-me sobre o micro-crédito do Grameen. Outra decisão importante a comunicar e que depois de sobejamente reflectida, está prestes a ser tomada: que todos os três anos, sem período de carência e por prazo indeteminado, de agora em diante e esteja eu onde estiver, haja poupanças suficiente para ficar seis meses, no mínimo, sem trabalhar, para me dedicar não só ao bem comum mas também à felicidade própria. Assim queira e permita o Senhor.

sexta-feira, julho 24, 2009

Episodio 1: Bombaim

Calcuta, 24 de Julho do ano de 2009.

Camaradas,
Na India ha duas coisas que por mais que se tente captar, jamais se conseguira ser fiel ao original: falo das cores e dos cheiros. Nao podendo captar os odores nem po-los em palavras, e para nao cair na trivialidade de criar mais uma palete esbatida , optei por publicar a maioria das fotos em preto e branco. Por enquanto apenas o primeiro episodio passado em Bombaim esta disponivel, para breve e a medida que forem acontecendo, os restantes. Em vez dos cheiros, optei por vos presentear com os sons. Banda sonora a cargo do indiano Nitin Sawhney.

Aquele abraco,
Bruce Lee Singh

quarta-feira, julho 22, 2009

Diário de Viagem - dia 8

17 de Julho de 2009,

O cheiro a mijo que emana deste colchão não me deixa dormir. Finalmente são cinco e quarenta e cinco e toca o despertador. Depois de um duche de água fria saio a caminho da Mother’s House. Faço o caminho a pé pelo bairro muçulmano onde de um lado e de outro os homens se lavam à beira da estrada com uns baldes improvisados enquanto alguns lojistas vão abrindo as persianas das chafaricas para começarem a vender. Às sete, depois da missa a que os mais devotos e resistentes assistem, abrem-se as portas para o pequeno almoço e sentados em bancos corridos cada um tem direito a uma fatia de pão, a uma banana que desaparece com uma dentada e a um copo de chá com leite. Talvez umas 100 pessoas, na maioria estudantes universitários que aproveitam as férias de verão para fazer isto, viram-se agora para os cartazes que nas paredes brancas desta casa guiam a oração antes da saída.

São sete e meia e a sineta que toca prenuncia a abertura dos portões. Uma das irmãs sobe em cima dum banco para avisar que devido às tumultuosas greves que vão acontencendo por Calcutá - ontem houve algures na cidade um punhado de autocarros a arder como retaliação por uma tal de subida do imposto municipal - os voluntariados que tenham de deslocar-se para longe são aconselhados a não ir dado o perigo iminente. É o meu caso. É certo que não vim para Calcutá para folgas e que para o Senhor um dia de voluntariado cumprido sob tão delicadas condições contará a dobrar. Junto-me a mais dois ou três que pensam assim e seguimos a caminho de Daya Danh. Oito e meia e chegamos finalmente ao destino, depois de 15 minutos de táxi e de mais uns tantos a pé. Junto à porta, de túnica branca com risca azul uma das freiras dá-nos as boas vindas, espantada com o facto de termos resolvido vir. Entro.

Nunca acreditei na sorte, muito menos no azar. Sempre estive certo que cada um trilha o seu caminho e que as coisas acontecem quando queremos muito e fazemos por isso. À minha frente duas cadeiras de rodas onde se torcem dois miúdos paralíticos que vão sendo guiados para um passeio no jardim, enquanto um puto nú foge a coxear, pela sala principal, duma freira que segura uns calções na mão. No canto da sala um outro - vim a saber mais tarde cego, surdo e mudo - que a única coisa que faz é abanar a cabeça pendularmente para a esquerda e para a direita e soltar umas gargalhadas estridentes de quando em vez. Impávidos, sem reacção, três vegetais apertados numas cadeiras improvisadas de madeira olham para a parede e imaginam qualquer coisa que nunca vi. Todos eles, maiores de quatro anos, são “órfãos” de pai e de mãe, deficientes de nascença e abandonados à porta desta instituição com poucos dias de vida. Encontraram aqui a fuga à sentença prematura e uma casa que lhes dá o que vestir, o que comer e os protege do que há lá fora. Há autistas, cegos, surdos e mudos, paralíticos e deficientes mentais. Todos eles têm nome mas destes muito poucos alguma vez serão alguém. Aos doze anos serão mudados para outra casa, depois para outra e finalmente para outra, até que pela última vez ouçam o chiar da cadeira que os prende ao chão ou sintam no ombro a mão que nunca conseguiram ver. Perante tamanha lição de humildade aprendo agora que há muita gente que nunca chega a ter a sorte de não ter de depender do azar.

O primeiro dia aqui foi fértil em sensações. Como poucos voluntários vieram, houve trabalho para 4 horas sem parar. Muita roupa para torcer e para secar no terraço. Desço as escadas e um dos putos vem a correr para mim e estende-me a mão. Assim que a toco não mais a larga. Não fala, pouco anda e só pelos sorrisos que vai esboçando me apercebo que deve estar feliz. Sentamo-nos para ver um filme e imperialmente estende a sua perna em cima da minha para um pouco de conforto até que outra criança, aqui já ao lado, me diz que precisa de ir à casa de banho. Apercebo-me que não anda e levo-o ao colo até lá. Entro no cubículo e sem tocar no chão - as pernas dele fazem um ângulo de quarenta e cinco graus - consigo desajeitadamente tirar-lhe a roupa necessária para que não se molhem os calções. Humildemente pede-me que feche a porta para que ninguém espreite. E pela primeira vez sinto o peso da responsabilidade de ter alguém a depender totalmente de mim. Embora latentemente negativo, o ambiente que se vive em Daya Danh é feliz, descontraído. Os putos fazem a festa, gritam, batem palmas e aventuram-se em todo o tipo de loucuras até que as irmãs o permitam. Embora já passe da hora de saída, fico mais um pouco para terminar de dar de comer a uma das três ou quatro crianças paralíticas que aqui vivem. Meias colheradas de cada vez, ao som do “avião” que me lembro ouvir os meus pais fazerem quando em miúdo não queria comer e a refeição está terminada. Hora de meter a tropa a dormir a sesta e o primeiro dia está terminado.

De regresso à cidade, agora no metro velho de Calcutá, um certo orgulho de ter tomado as decisões que me trouxeram até aqui e a confiança de um primeiro dia de dever cumprido. No meio do fatalismo que embora invisível paira sobre Daya Danh, sei agora que o azar, tal como o vento, sopra mais forte nuns dia do que noutros.

Diário de Viagem - dia 7

16 de Julho de 2009,

O hospital está em obras e entro pelo canto das emergências. Alguém grita deitado no chão, enquanto cinco homens o tentam acalmar. Não entendo a causa, mas dá dó. Ao meu lado um velhote com respiração ofegante e uma mãe que em vão tenta segurar a filha que desata a correr. Por detrás do guichet duas mulheres descontraídas que, a observar pelas caretas que fazem, estão perfeitamente habituadas a este ambiente infernal. É um hospital velho, caótico, terceiro mundista este em que finalmente recebo a segunda dose da raiva. Em vão desloco-me ainda a três farmácias em busca da vacina da cólera mas ao que parece foi abolida na Índia. Não há dia em que esta cidade, que confiantemente apelido já de Bagdade, não me surpreenda. A pobeza miserável que aqui vejo desafia os limites do imaginável e a terminar a manhã uma mulher pobre, meio nua, come as entranhas dum corvo que, ainda só meio depenado, vive os primeiros cinco minutos de morte.
À tarde, depois de um almoço tardio em que me inicio na gastronomia vegetariana do Rajastão, pouco aconteceu. Uma hora num cibercafé e uma cerveja de final de tarde e regresso ao hotel. Termino o início de noite a assistir a mais um êxito de Bollywood e ponho o despertador para as cinco e quarenta e cinco da manhã, porque o trabalho começa às sete. Será o primeiro dia a concretizar o objectivo que me trouxe aqui.

quinta-feira, julho 16, 2009

Diário de Viagem - dia 6

15 de Julho de 2009,

Embora a primeira noite em Calcutá não tenha sido pacífica - fiquei num hotel que embora sugerido pelo Lonely Planet é talvez a maior espelunca onde já alguma vez estive, com mendigos a pernoitar no hall de entrada junto à minha porta e um quarto com uma ventoinha que faz tanto barulho que não me deixa dormir - vou motivado a caminho de Park Street. Nos meus contactos antes de embarcar nesta aventura tinha conseguido o contacto de um tal de Mr. Ravi Poddar, Cônsul Honorário de Portugal em Calcutá. Até agora não entendo muito bem o interesse de um consulado, ainda que honorário, em Calcutá, já que nenhum português reside aqui, não há interesses portugueses na cidade e raramente alguém lhes bate à porta. Em todo o caso, ao que parece é tradição nas grandes cidades indianas o governo português entrar em contacto com algum empresário local reputado e fazê-lo diplomata. Foi o caso do Mr. Poddar, que de empresário automóvel foi transformado em cônsul. É notório o império que construiu. Em plena Park Street, uma das artérias principais do centro de Calcutá, mandou construir um edifício que apelidou de Ravi Auto House, com 6 andares, que além do stand onde desfilam Mercedes e outras marcas de luxo alberga também os escritórios da sua e de outras empresas, restaurantes e outros estabelecimentos. Fui recebido às 11.30 pelo Anup - o mão direita do Sr. Ravi - que fazia “sala” enquanto o patrão terminava uma reunião. Dez minutos mais tarde fui finalmente recebido pelo magnata que de forma simpática me deu as boas vindas, me contou das suas visitas diplomáticas a Portugal e da recepção que foi feita ao presidente português em Delhi no ano passado, assim como dos poucos vestígios portugueses que remanescem em Calcutá - um curso da língua de Camões na Universidade da cidade e uma rua a que chamaram de Rua da Igreja Portuguesa. Hei-de lá ir. De rompante entra o Gaudam na sala, o director de marketing da empresa, um tipo novo com ar bonacheirão que estudou português durante umas semanas (já se esqueceu de tudo) e que acabou por desistir para pragmaticamente se iniciar no mandarim.

Entre apresentações, despeço-me do Mr. Ravi - fica a promessa de ficarmos em contacto e de num dos próximos fins de semana me levar a uma cidade junto a Calcutá onde haverá um festival religioso hindu - e o Anup e o Gaudam convidam-me para almoçar e levam-me depois disso à Mother House onde será às 3 horas da tarde o briefing aos voluntários. Inacreditável o número de estrangeiros que aguardam no terraço do local de retiro uma oportunidade para se voluntariarem: muitos espanhóis, muitos japoneses e depois um grupo misturado de belgas, irlandeses, ingleses e eu, que já em conversa avançada vamos discutindo quais das opções escolher, que são várias em termos de locais mas que se dividem essencialmente em crianças e idosos. Embora a minha vontade tombasse para a segunda, depois de ver as fotos que vinham na brochura e de me relembrar da estória que me contaram do velhote que tinha morrido nos braços do voluntário enquanto este lhe dava banho, optei por começar pelo aparentemente mais fácil e, caso se proporcione, avancarei para o nível mais avançado na última das 3 semanas que me voluntariarei. Quinta-feira (amanhã) é o único dia de folga semanal pelo que só na sexta-feira começarei a trabalhar. Será certamente duro, pela experiência e certamente para mim pelo facto de o encontro para o pequeno almoço ser todos os dias às 7 da manhã (quem me conhece bem sabe que eu não sou um animal diurno!) e serem depois disso 4 horas de trabalho intensivo até ao meio-dia, com possibilidade de um turno à tarde para quem quiser. São tantas as nacionalidades como as estórias de vida que aqui se reúnem: uma belga de 46 anos que deixou os filhos e o marido em casa para concretizar este que era um sonho de uma vida, um indiano órfão nascido em Calcutá, criado durante os primeiros 8 meses pelas freiras desta casa e depois adoptado por um casal de belgas e que faz deste o seu primeiro regresso a casa depois de mais de 30 anos, um inglês que anda pela Índia durante 5 meses, eu que me despedi para vir fazer isto, um irlandês que junto com a mulher tiraram um mês de férias para vir conhecer Calcutá. No final de contas um punhado de malucos.

Acabámos o dia a beber cervejas no terraço do hotel, antes de seguir para um jantar rápido com o indiano, a sua namorada belga e com a maluca que deixou o marido e os filhos em casa para concretizar este sonho de uma vida. Há quem assegure que nada nesta vida é impossível. Á volta desta mesa não há seguramente quem rebata essa afirmação.

Diário de Viagem - dia 5

14 de Julho de 2009, dia 5

Uma atrás da outra subo novamente as escadas do Mondegar, talvez pela última vez. Despeço-me do Siva e rumo ao aeroporto um pouco mais cedo para ter tempo ainda de ver das vacinas. Como já augurado o médico de ontem era realmente incompetente e tomar as vacinas no aeroporto seria mais uma dor de cabeça: teria de as ter comprado primeiro, arranjado a prescrição médica, o diabo a sete. Será em Calcutá, assim o espero.
O vôo está atrasado 3 horas, porque o avião que vinha de Goa, devido às monções, atrasou.
Chego a Calcutá, finalmente, às 22. Chove intensamente e o caminho até ao hotel revela apenas aquilo que já esperava: que a segunda maior cidade da Índia é, em todo o seu esplendor, o rosto da miséria profunda. Um dos poucos mas fortes governos comunistas no país que, em nome da igualdade, parece que mais não fez do que tornar todos igualmente pobres. Chove intensamente e são milhares os que nas beiras das estradas dormem encharcados porque o que dorme ao seu lado foi mais rápido a encontrar a última ponta de plástico. Não é um filme, acontece à minha frente. Se alguma vez tive dúvidas que a fazer voluntariado teria de ser aqui, posso dormir descansado.

Diário de Viagem - dia 4

13 de Julho de 2009,

Prometi ao Siva que hoje fazia novamente uma visita ao café Mondegar. Já há duas semanas sem trabalhar - continuarei por mais dois meses assim - tomei hoje a consciência de que o tempo passa mas a uma velocidade diferente. A necessidade de se apressar deixa de fazer sentido porque já aqui à frente se passeia todo o tempo do mundo e sem que eu me importe com isso. Sei que hoje é segunda-feira porque fui procurar saber. Podia ser sexta, quarta ou sábado sem que isso interferisse nos meus planos. Hoje é segunda-feira e o telefone toca com o lembrete de que ao meio-dia o Sanjeev passa aqui em baixo para me apanhar. Assim é. Entre o abrir da porta do hotel e o fechar da porta do carro, o calor começa a fazer-se sentir porque já não chove há quase um dia.

No sábado partilhei com ele o meu espanto relativamente ao facto de - e ao contrário do que se vê diariamente em Shanghai - raramente ter visto grandes carros a lavrar as estradas de Bombaim. Acho que ele sentiu na minha inquietação a comparação explícita e a dúvida no poderio do capitalismo democrático indiano e ainda antes do almoço fez questão de passar pelos stands da Porsche, da Rolls Royce, da Range Rover e da Jaguar - que entrou na Índia apenas no mês passado. Para que a dúvida não subsista, sobe a íngreme estrada até Bandra West para me mostrar do lado esquerdo a última extravagância do homem mais rico da Índia, fundador do conglomerado Reliance: a construção da sua nova “casa” que curiosamente não chega a entrar no conceito de mansão - um edifício com talvez 20 andares, onde se incluem 3 de estacionamento, 4 para os luxuosos apartamentos de cada um dos filhos, alguns 3 para um hotel que receberá os futuros convidados, e outros tantos distribuidos entre cinemas, restaurantes, heliporto e mais umas quantas futilidades. De noite, enquanto continuar a construção, albergará também, por entres os tapumes que as protegem das chuvas, duas dúzias de famílias que a esta hora palmilham as ruas de Bombaim em busca de coisa nenhuma.

Segunda-feira (?) foi também o dia de mais um excelente almoço, desta vez no Horse Racing Club, que como o próprio nome indica é onde parte da elite de Bombaim vem gastar uns trocos em apostas de cavalos ao final de semana, hábito que vem dos tempos da governação britânca. Hoje os cavalos descansam e a minha aposta vai para o caril de peixe goês, para a famigerada Kingfisher e para o kulfi. Aposta ganha, a repetir. Depois do almoço seguimos para os jardins suspensos, no topo da cidade, de onde se consegue a panorâmica da cidade e acabamos por descer ao hospital, onde preciso de repetir a dose da cólera e da raiva. Sem lugar para estacionar, o Sanjeev entrega a chave do carro a um puto de rua que descalço e ainda sem idade para conduzir a guarda com a promessa de que em que caso de necessidade o muda de sítio. É a prova derradeira de que nada há a temer nesta cidade. O hospital, um edíficio carcomido pelo tempo e em plena lotação, é apenas mais um reflexo deste caos urbano em que vivem 16 milhões de pessoas em espaço limitado. Por entre macas onde os lençóis ainda conservam sinais de sangue seco pelo mofo, pacotes de soro encostados no corredor e pequenos cubículos semi fechados por cortinas onde famílias esperam pelo diagnóstico do patriarca, encontrei o médico. É um velhote com um ar incompetente e com pouca vontade de trabalhar, que continua a inventar razões para que eu espere por amanhã e que faça a consulta directamente no aeroporto. Embora com todo o tempo do mundo, não pretendo desperdiçá-lo. Decido fazer como me dizem e saio.

Antes de me despedir - a lógica insiste que talvez seja para sempre - do meu amigo Sanjeev, de agradecer a tremenda hospitalidade e de, com pena, regressar ao hotel, contornamos o café Mondegar. Venho agora a saber que este foi um dos cinco locais espalhados pela cidade onde foram cometidos os atentados em Novembro último, por paquistaneses desembarcados nesse mesmo dia junto a Chowpatti Beach e armados de metralhadoras, que acabaram a disparar a sangue frio, com todo o tempo do mundo e mais meio, e em todas as direcções, até que o rasto de sangue que escorreu pelas três escadas da entrada tenha encontrado o seu caminho na sargeta que desemboca junto à banca dos jornais.

Tinha planos para visitar o Taj Hotel para um copo mais à noite mas a chuva teima em não parar e a piscina lá fora não me motiva a sair. Acabo a noite no quarto, a estrear-me nos êxitos de Bollywood e a acabar com os iogurtes que comprei faz já dois dias. Tinha prometido regressar hoje ao Mondegar mas não deu. Talvez suba essas três escadas novamente amanhã.

segunda-feira, julho 13, 2009

Diário de Viagem - dia 3

12 de Julho de 2009,

“Sir, you promised you'd come back yesterday but you didn't”, disse o Siva, empregado do café Mondegar onde tinha estado no dia em que cheguei, como se as promessas dum freguês fossem para levar a sério. Num gesto de humildade desculpei-me e expliquei-lhe que tinha andado a visitar a cidade com um amigo e que tínhamos acabado por almoçar noutro lado. Acabou por regressar mais duas ou três vezes, entre garfadas de kebab, uma para me perguntar o que achava da ìndia e outra para me sugerir que visitasse a terra onde nasceu - bem no centro do país - e de onde é originário o kamasutra. O saber não ocupa lugar, talvez ainda passe por lá.

A mesa onde me encontrava não tinha sido, na verdade, a mesa onde me tinha sentado quando entrei. Tinha acabado de pedir o almoço quando reparei que na mesa em frente dois locais me observavam enquanto comentavam. Resolvi saudá-los e a típica pergunta surgiu: “De onde és?” A resposta típica surgiu: “Consegues adivinhar?”. “Não me digas que és Indiano?”, “Não!”, “Italiano?”. “Não!”. Resolvi acabar com o diálogo porque como na maioria das vezes, a não ser que dê dicas muito objectivas a resposta certa não surge antes de vigésima vez. “Sou do primeiro país a ter chegado à Índia” disse-lhes eu. A superioridade indiana com que antes me olhavam fez saltar um “Ahh, Portugal!” e nessa mesma altura um deles puxou uma cadeira e com um gesto de mão pediu-me que me sentasse ao lado deles. Eram dois tipos simpáticos, aí dos seus 35 anos, empresários do vidro: “Este copo de onde estás a beber, as garrafas que aqui vês e todo o vidro que aqui têm vem da minha fábrica”, disse um deles. Acabámos a falar das diferenças entre China e Índia (naturalmente acham que a Índia é 30 vezes superior à China), da economia paralela e de política. Estavam com pressa e rapidamente se despediram, gesto que repeti depois de pagar a conta e de prometer ao Siva que amanhã estarei de volta.

Enquanto me dirijo para o porto para apanhar o ferry que me levará à Elephanta Island - ilha onde há 1300 anos atrás se erigiu um dos templos mais importantes da Índia dedicados ao Deus Shiva, e cujo nome foi dado pelos primeiros portugueses que aqui chegaram - ainda houve tempo para ajudar um pedinte e ser convidado para participar como figurante num filme de Bollywood.

O mar está revolto. A viagem de mais de uma hora não foi fácil, feita num cacilheiro que seguramente não era mais seguro do que as primeiras caravelas que aqui chegaram há 500 anos. Aproveitei para fechar os olhos e relaxar, enquanto a família que estava sentada ao meu lado aproveitava para fotografar tudo à sua volta, como se este fosse o mais especial passeio domingueiro. Chegados à ilha, a maré de guias a querer vender os seus serviços inunda o local. Acabo por acordar com um deles um preço justo e seguimos a passos largos para as escadas que nos levam ao cimo do monte. Conta-me que nesta ilha vivem 1600 pessoas, todas elas a subsistir exclusivamente das bugigangas que vendem aos turistas e das visitas guiadas e que aqui só há electricidade 4 horas por dia, proveniente dum gerador. O templo é interessante, especialmente por ter sido esculpido na rocha e pela idade que tem. Não tem seguramente a majestosidade dos templos de Angkor no Cambodja mas tem a proximidade espiritual de termos sido nós a nomeá-lo. Entre fotografias e explicacões, fui interpelado por um africano que vim a saber mais tarde ser moçambicano. Queria fazer um brinde com umas cervejas que trazia num saco de plástico - o nível de álcool no sangue que trazia enferrujava-lhe o português - e só não levou a intenção a bom porto porque alguém o convenceu que isso não seria benvindo num local sagrado e seguramente isso provocou nele o medo de poder vir a ser divinamente castigado. Tirámos umas fotos e prometi que as enviarei mais tarde.

A parte da manhã tinha, no entanto, sido o ponto alto. Dez da manhã e dirijo-me para Banganga Tank, local místico em Bombaim. No cimo dum monte, entre prédios altos e milhares de pessoas que se sentam nas ruas, encontra-se seguramente a favela mais sagrada do mundo. No meio deste bairro, uma piscina gigante ao ar livre, cheia com água das chuvas e circundada por bancadas onde saris e túnicas voltam a ser vestidas depois do banho sagrado . No meio deste tanque, uma haste gigante marca o centro da terra. Segundo reza a lenda, o Deus Ram teria perfurado a Terra dum lado ao outro e uma das pontas da lança teria rasgado Banganga. Em volta da piscina nasce toda a favela, uma mistura de cores e cheiros difícil de descrever. Labirintos mágicos ligam pequenos templos de onde ecoam cânticos e rituais difíceis de compreender. Sou convidado a entrar num deles, onde homens e mulheres de túnicas brancas, nesta ensolarada manhã de Domingo, misturam flores, água e pós num ritual de reza que têm tanto de bonito como de enigmático. Saio em direcção ao cume, onde putos jogam à bola com a mão, entre carros estacionados cheios de amolgadelas. Duas fotografias foram o suficiente para gerar interesse e acabei a marcar penálties e a ensiná-los a dar toques na bola e a reparar nas janelas cheias de velhotes que vieram para ver que circo era aquele que se tinha montado ali. Tempo de despedidas, entro num táxi e em alinhamento sagrado, começa a chuva torrencial.

São 23 horas. Acabo de chegar de mais um jantar com o Santosh e com outro amigo, depois de umas cervejas num Sports bar para fazer as despedidas, já que para eles amanhã é dia de trabalho. Entre o final do noticiário da noite e as conversas dos taxistas que lá em baixo esperam pelo último negócio do dia, apaguei a luz.

domingo, julho 12, 2009

Diário de Viagem - dia 2

11 de Julho de 2009,

Acordei cedo mas fiquei na ronha. Lá fora chovia consistentemente enquanto as ruas, apinhadas de gente, continuavam a sua rotina de apenas mais um dia. Acabo de receber uma mensagem do Sanjeev Mehta - director da Shopworks aqui na India e amigo do João Barbosa, meu amigo de Shanghai:
“Come to: Otters Club, Carter Road, Bandra West. Ask the taxi guy to bring you via the new bandra-worli sealing bridge. Call me anytime in case you get lost or the taxi driver needs directions in local language. Will be there at 1 pm. Cheers, Sanjeev.”

No dia anterior já tinha entrado em contacto com o Sanjeev. Desde logo me pareceu um tipo muito porreiro e acessível que fazia questão de repetir “Benvindo a Bombaim”, sabendo que isso me faria sentir mais em casa. Já um pouco atrasado saí do hotel rumo a Bandra, num táxi desta vez conduzido por um muçulmano de cabelo e barba cor-de-laranja. Por entre uns disparos de flash ao longo da marginal, uns olhares curiosos pelo espelho retrovisor e uns comentários empolgados que fazia da cidade, quase ficámos amigos. Passámos pela nova ponte, inaugurada há uma dúzia de dias, aparentemente uma excelente obra de engenharia, e com 5 minutos de atraso lá chegámos, depois de 50 minutos de travessia.

Tinha acabado de receber mais uma mensagem do Sanjeev a desculpar o facto de precisar de mais de meia hora para lá chegar já que tinha ficado preso numa reunião. Como só poderia entrar acompanhado por membros, fiquei sentado junto à recepção. Este era evidentemente um local elitista, apenas acessível à nata da nata de Bombaim. Embora num edifício raso que mais parecia uma sanzala tropical envelhecida do que um clube de elite, o amontoado de gente distinta que se passeava por ali, as raquetes de squash, a piscina limpa, os seguranças fardados e a quantidade de mulheres bem vestidas, pintadas e penteadas não deixam margem para dúvidas. Uma delas chama os filhos para a mesa enquanto cumprimenta um estranho que se aproxima - era o Sanjeev.

Descobri mais tarde que marcou encontro neste local por estar perto de casa, mas a razão poderia tão simplesmente ter sido a qualidade do repasto. Talvez a impressão que deixei à mesa não tenho sido a melhor, tal foi a violência com que lancei as mãos às costeletas de cordeiro e pernas de frango tandoori, às rodelas de cebola (as rodelas de cebola estão presentes em quase todas as refeições, um pouco como o pão está à nossa mesa quase sempre) e ao roti que acabou de chegar, mas o Barbosa já o tinha alertado para o facto dos portugueses se empolgarem perante boa comida.

O Sanjeev tem ar de Chuck Norris de Bollywood. Cabelo raso de risca ao meio com gel, umas calças de ganga meio apertadas por cima dumas botas castanhas e um polo às riscas brancas, azuis e amarelas. Tem dois ou três dentes forradas a ouro, uma pêra de barbicha e é um daqueles casos em que a voz não condiz com a cara. É difícil de acreditar que tem já 43 anos - não diria mais de 35 - mas com duas filhas em idade escolar e depois de me contar que já foi director-geral da Kodak para o Sudeste Asiático e de que já passou por mais de seis empresas, é bem possível. Falámos da Índia, do sistema escolar, da cultura empresarial, de planos futuros, de religião e da minha viagem e ficámos amigos. Falou-me tão bem das Maldivas que lá vou ter de ir qualquer dia.

Terminado o almoço, entrámos no carro para uma volta ao bairro. Pali Hills (mal comparado será Beverly Hills de Bombaim), uma descida à praia e uma igreja católica com 120 anos onde precisamos de entrar descalços. As despedidas fizeram-se lá para as 5 da tarde e ficou marcado novo encontro para segunda-feira. Regresso ao hotel em primeira-classe no combóio urbano. Uma carruagem inacreditável, verde tropa, semelhante às primeiras que haveria em Inglaterra na Revolução Industrial, ventoínhas penduradas no tecto, anúncios A3 pendurados em todo o lado e a mescla habitual de gente. Sento-me num banco corrido, pouco confortável, a olhar para cinco pessoas penduradas na porta, para o muçulmano ao meu lado e para um velhote que acabou de entrar e que parece saído dum DVD promocional sobre Yoga, de batina branca, duas pintas vermelhas na testa e cabelo e barba longa mas bem aprumada, que devagar tira do bolso o telefone para atender uma chamada.

É sábado à noite mas acabei por ficar no quarto. Comprei a viagem para Calcutá e sigo na terça-feira.

sábado, julho 11, 2009

Diario de viagem - Dia 1

10 de Julho de 2009,

Já com duas horas de atraso começo a ver ao longe Bombaim. Nove horas de vôo num sono mal dormido e a imagem dum aeroporto que nasce do meio duma favela. A imagem não é bonita mas impressiona.

Seguem-se as burocracias demoradas do costume e a consciência de que o primeiro teste está aí fora: apanhar um táxi. Toda a gente que se quer profissionalizar neste mestere das viagens sabe que a gravidade da extorsão varia na direcção directa do grau de desenvolvimento do país e não na proporção inversa do seu grau de espiritualidade. Maslow explicaria bem isto. E eu sabia que ia ser enganado. E pior que isso, levei isso na boa. Acabei por pagar 430 rupias por um veículo supostamente com ar-condicionado, onde toda a refrigeração passava por quatro janelas abertas. Era no final de contas um táxi da era colonial, sem espelhos, onde um Seikh ao volante fazia por criar três filas onde numa estrada evidentemente só cabiam duas. Não paguei pelo serviço mas paguei pela experiência - ao longo do trilho entre o aeroporto e o hotel vi o porquê de Bombaim ter o condão de deprimir e empolgar, deprimir e empolgar, deprimir e empolgar, com esta cadência de segundos: putos a andar nús na rua como se isso fosse cool, favelas que nos circundam, cheiros nauseabundos. Abro o vidro contrário e a locomoção faz entrar os saris de todas as cores das mulheres que tentam fugir da chuva, enquanto saltam e chapinham nas poças onde dormem os restos das iguarias que deram de comer a meia dúzia de famílias na noite anterior.

Uma hora depois chego ao Residency Hotel. Instalo-me num quarto que embora modesto é caro (Bombaim é a cidade mais cara da Índia e não se consegue um hotel por menos de 25EUR/noite) e volto a descer para começar o dia. Falo com o Lawrence, que por detrás do balcão e depois de ver pelo passaporte que sou Português faz questão de demonstrar a sua hospitalidade: “Ahh és Rodrigues? Conheço alguns Rodrigues aqui em Bombaim. Vais achar inacreditável quando fores ao Sul, vais ouvir pessoas a falar português e se puderes assistir a um casamento presta bem atenção às músicas que eles cantam, ainda se canta em português. Quando era pequeno aprendi isso mas já me esqueci”, disse ele. Enquanto saio para comprar um cartão de telemóvel não posso deixar de me congratular com o facto de que por onde quer que passe pela Ásia, não há nenhum ex-país colonial que seja tão bem recebido como nós, os Portugueses - é uma empatia honesta que se gera num segundo e que rapidamente nos permite criar uma intimidade que desculpa desde logo qualquer pergunta que não era suposto acontecer.

Acabo a almoçar no café Mondegar, uma sugestão do Ashwani e onde supostamente o pessoal da Unilever vem mandar abaixo umas cervejas ao final da tarde. A única condição que coloco é que me sugiram qualquer coisa não muito picante e acaba na mesa meia galinha num molho de menta e coentros, com um acompanhamento de cebola e lima e duas cerveja Kingfisher. Curto e grosso, uma das melhores refeições da minha vida. Acabo a conversar com o empregado - na verdade, a ser interrogado pelo empregado - que depois de saber que sou donde sou, faz questão de me perguntar o que faço, donde venho e para onde vou. Depois de passar a chuva e de lhe prometer que regressarei amanhã, faço-me à estrada. Em pouco mais de duas horas, compro um livro e um hit de Bollywood e visito as redondezas do hotel, entre meia dúzia de fotos em que registo esta cidade que parece que parou na era Vitoriana.

São 6h30 da tarde e o telemóvel toca. É o Santosh, local de Bombaim e amigo dos tempos da Unilever em Shanghai, já está lá em baixo. Depois de um abraço sentido seguimos para um táxi que nos levará até à Gateway, passando pelo Hotel Taj Mahal que depois dos ataques do ano passado já parece reconstruído, pela Marine Drive e pelas praias de Bombaim, onde ao pôr do sol se joga à bola, se mendiga, se descansa, até que a última chuva do dia envie toda a gente para casa mais cedo. Eu e o Santosh (Sequeira de apelido), ao sabor de iguarias do sul que comemos com as mãos, pomos a conversa em dia, conversa que se torna partilha pessoal, enquanto ao som da chuva miuda procuramos um taxi ao longo da marginal. Nada se substitui numa viagens destas à benção que é poder sermos guiados pela experiência e mestria dum local, poupam-se dores de cabeça, ganha-se tempo e entra-se em portas que nem o melhor dos guias consegue descobrir.

Esta aventura de 47 dias não podia ter começado melhor. São onze da noite e, ao final do dia em que tive nove horas de vôo num sono mal dormido, já espero ansiosamente pelo dia de amanhã.

quarta-feira, julho 08, 2009

Bruce Lee Singh

Shanghai, 8 de Julho de 2009,

a partir de amanhã dia 9, este blog ressuscitará. Não foi ao terceiro dia, como nas escrituras, mas ressuscitará.
A partir de amanhã dia 9, e durante 2 meses, o Bruce Lee passará a chamar-se Bruce Lee Singh e em vez de um cinturão, envergará um turbante.
A partir de amanhã dia 9, o Singh andará com uma mochila às costas, em redenção espiritual pelos caminhos do Da Gama, desde Bombaim a Goa, passando por Calcutá e ainda mais por onde as monções e os vice-reis quiserem.
A partir de amanhã dia 9, serão mais 47 dias.

Aquele abraço em partida,

Rui