segunda-feira, julho 27, 2009

Diário de Viagem - semana 2

25 de Julho, segunda semana.

Calcutá, a cidade onde o tempo parou.

Fez terça-feira uma semana que aterrei em Calcutá. Depois do abalo inicial de chegar a uma cidade que parece que parou no tempo e que duvido alguma vez vá avançar, onde se dorme na rua apesar de os hotéis estarem a meia dúzia de tostões, onde homens puxam carroças mas há metro, onde se come com as mão porque sabe melhor e onde crianças morrem por não as lavarem, onde as vacas são sagradas e entopem o trânsito, onde todas as cores são possíveis, onde cheira a cozinhados da mãe em todas as esquinas, onde se esconde o Vasco da Gama, onde se toma banho na rua, onde o povo é sujo mas bonito, onde muçulmanos, cristãos, budistas, hindus e ateus vivem em paz e onde o partido comunista manda, onde há lixo que nunca mais acaba e não há onde por o lixo, onde abanar a cabeça para a esquerda e para a direita significa “sim” e “não”, onde se come por um euro e muita gente morre sem alimento e onde se discute filosofia na rua, sinto-me quase em casa. Há cidades que nasceram para ser degradadas, degradantes e paradoxais, mas é exactamente esse traço que lhes transmite o carisma e a imperfeição de onde advém toda esta energia.

O poder da mente.

Calcutá será eternamente a cidade onde me iniciei na meditação. O Gautam convidou-me para uma sessão domingueira lá para “trás do sol posto” e, empolgado, lá me juntei. Já há três anos que ele, todos os domingos, religiosamente lá vai. Diz-me que se sente outro agora, com uma paz de espírito transcendental. Já fez um ou dois cursos de introdução à cura prânica, também conhecida como ayurvédica, que resumindo e baralhando significa curar doenças através da meditação, sem qualquer recurso ao toque ou a medicação. Diz que agora consegue curar gripes com duas meias horas de meditação. Embora tendencialmente céptico na filosofia transcendental, sou um convicto no poder da mente e por certo este treino levará a qualquer lado. A primeira experiência para mim, tenho de admitir, foi um tanto ou quanto desmotivante. Foi meia hora com os olhos fechados onde me pediram que tentasse imaginar o planeta Terra a rodar à minha frente e que o agarasse com as mãos, que visionasse ora a chama do meu coração ora uma coroa em cima da minha cabeça ao mesmo tempo que inspirava e expirava de seis em seis segundos e entoava um “ohhhmmmmm” prolongado. Nos entretantos a voz do mestre, ao som duma musiquinha étnica, ia-nos dando instruções. Quando abri os olhos, meio ensonado, sem ver coração nem coroa, e ainda só a vislumbrar a ponta esquerda do pólo norte e a figura do Ramakrishna à minha frente, reparei em meia dúzia de tipos que claramente se teriam transcendido, tal era o esbugalhado dos olhos e a cara extasiada dos meninos. Ao ver este cenário, a única coisa que me deixou mais tranquilo foi saber que a meditação é um processo de aprendizagem longo, que pode levar anos. Ao atingir-se esse nível - ao qual só se chega quando conseguimos por a mente a pensar em nada, ficando totalmente vazia - entra-se num estado de tranquilidade superior ao do sono, conseguindo-se a superação mental a que chamo transcendência. Meia hora disto, de manhã e à noite corresponde grosso modo a quatro horas de sono, a uma vida mais saudável, a um sistema imunitário de leão e a uma tranquilidade que, daquilo que vi, move planetas.


Bauddha Dharmankur Sabha.

Não vim em busca espiritual à Índia, confesso. Mas entendo porque haja quem o faça. É impossível ir onde quer que seja sem que um gesto de religiosidade se manifeste. Cânticos que ecoam das mesquitas ao final da tarde, velhotes que se benzem no rio, mulheres de pinta na testa, missionários católicos, monges budistas, empregados de restaurante que levam a mão à boca e à testa quando uma moeda cai no chão. Depois de meia dúzia de dias a pagar muito por um quarto manhoso e um colchão a cheirar a mijo, a financiar agiotas e a enriquecer empresários que pouco sabem sobre serviço ao cliente, deixei que a espiritualidade própria da cidade me invadisse e optei por me mudar para um sítio onde sabia que não seria aldrabado, onde posso deixar a porta destrancada e onde o buzinar de Sudder Street e a legião estrangeira ficam longe - para o Bauddha Dharmankur Sabha, a Associação Budista cá do sítio. Aluguei um quarto no primeiro andar a quatro euros por noite, com vista para a gigante estátua do Buddha que está lá em baixo, onde sou cumprimentado por monges à entrada e à saída e onde acordo às cinco e meia da manhã com cânticos no terraço. São instalações comedidas e humildes mas limpas, onde o ambiente é tranquilo e místico, escondidas num bairro castiço, propícias à introspecção.

AD-HD.

Fez hoje (sexta-feira) uma semana desde que comecei a trabalhar como voluntário para o Missionaries of Charity, missão fundada pela Madre Teresa na década de 50. O trabalho que tem sido feito ao longo dos anos é, honra lhe seja feita, impressionante: compaixão e dignidade são hoje palavras de uso corrente não só em Calcutá como noutras cidades onde a missão se instalou. Muitas mulheres fizeram o voto de castidade, deixaram tudo para trás e dedicam a sua vida a cuidar dos pobres, dos doentes e dos moribundos, porque também estes são filhos de Deus. Como excelente fenómeno de marketing que a Ordem da Madre Teresa se tornou ao longo dos anos, a oferta de voluntários excede claramente a procura - aliás, todos os centros foram planeados por forma a que as pessoas contratadas que lá trabalham sejam suficientes para garantir o seu funcionamente em pleno - o que leva a que o isto seja visto como um privilégio para o voluntário - alguns em busca de uma linha bonita no currículo que lhes dará o primeiro emprego quando regressaram e casa - mais do que para a Ordem. Intenções à parte, nesta semana lavei, sequei e recolhi mais roupa que em toda a minha vida, aprendi a dar de comer a putos que fazem birra (e com razão!) porque andam há um ano a comer o mesmo arroz com vegetais ao almoço e ao jantar, ajudei a vestir mais crianças do que a maioria das pessoas que conheço, limpei mais cús do que gostaria, mudei umas mil camas de lavado como se fosse faxineira de hotel e pús miúdos a dormir com a insistência com que tentava terminar os jogos de computador quando era pequeno. Faço tudo aquilo que sentado numa cadeira de escritório nunca teria tido oportunidade de fazer, sinto mais do que nunca que trabalho e giro lucro para quem dele precisa, sinto-me recompensado por isso e durmo bem. Esta semana foi também a semana em que concluí que as teorias económicas do Adam Smith e os modelos econométricos que se ensinam na escola não se aplicam, onde a realidade vive longe dos mapas de Excel e das apresentações idiotas de Powerpoint, alienada das palhaçadas do management, do variable pay, dos fringe benefits ou da fofoca dos corredores. Onde o mundo real, onde vive a maioria, é o da espera cruel pelo dia de amanhã e não o do subprime, do credit crunch ou da morte do King of Pop. Onde as pessoas não esperam pelo episódio da novela de amanhã, pelo replay do pontapé do Marco do Big Brother ou do coleccionável que sai com a próxima Caras. Onde os putos não estão à espera do último filme da Disney, a chamar nomes à empregada da escola ou a recarregar a PSP.

Attention Deficit - Hiperactivity Disorder, vulgo hiper-actividade, é a vertente em que me tenho vindo a especializar. A alguns dos voluntários foi designada uma criança para acompanharem durante o dia, particularmente na altura do estudo, onde os mais espeditos aprendem a ler, escrever e alguns dotes artísticos, como seja o tocar um instrumento ou aprender a desenhar. A madre superior deve ter lido na minha cara que eu vinha à procura de trabalho e deu-me a “custódia” do Ankur, O HIPERACTIVO. Qual guerreiro mongol, o filho da mãe - não deve ter mais de 8 anos - não pára 5 segundos quieto: ora manda pontapés em qualquer coisa que mexe, ora desata a correr, ora mete cola à boca, ora começa a chorar, ora desaparece, ora liga a mangueira e começa a molhar toda a gente, ora não dorme quando tem de dormir ora mija em qualquer canto. E o mais impressionante (o tipo é rápido) faz tudo isto em menos de dez minutos. Porque nada é servido de bandeja, sofre de deficiência - auditiva e mental - e ainda de epilepsia. O dia começa para ele às 9 horas como uma sessão de meditação (meditação, era bom era...), onde numa sala escura se ouvem umas músicas de luz apagada e segue-se meia hora de estudo. Veja-se bem o calibre do menino, construiram uma espécie de cela prisional onde me fecho com ele para lhe dar aula. Escusado será dizer que a bem da segurança apenas inclui uma cadeira e aí uns 4 metros quadrados para não dar azo a grandes ideias. Contra todas as expectativas, têm sido trinta minutos abençoados e ainda não causou distúrbios de maior, já aprendeu a escrever o meu nome e a desenhar um barco e uma estrela. Cheio de orgulho, lá lhe vou abrindo a “cela” todos os dez minutos para ele correr até às irmãs a mostrar o que anda a aprender.


Além de tudo isto, tenho re-descoberto em Calcutá as virtudes de se voltar a ter tempo para deambular, num fazer-nada desplicente e o pior é que estou a gostar. Perco tempo a visitar restaurantes, a dar voltas ao parque à procura de alguém que queira dar uns toques na bola, a entrar em bairros e vielas sem um propósito, a ler sobre o Sri Ramakrishna e a arte da meditação e a inteirar-me sobre o micro-crédito do Grameen. Outra decisão importante a comunicar e que depois de sobejamente reflectida, está prestes a ser tomada: que todos os três anos, sem período de carência e por prazo indeteminado, de agora em diante e esteja eu onde estiver, haja poupanças suficiente para ficar seis meses, no mínimo, sem trabalhar, para me dedicar não só ao bem comum mas também à felicidade própria. Assim queira e permita o Senhor.

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