26 de Julho, dia 17.
7 e 45 da manhã e toca o telefone. É o sobrinho do Mr. Ravi a adiar para as 10h30 o que estava previsto acontecer às 9h30. Não foi propriamente mais uma hora de sono porque preferi apostar no english breakfast do Flurry’s ali em Park Street. Tornei-me na última semana um habitué do local que é aqui em Calcutá (cidade conhecida também pela boa doçaria) um local sagrado para os crentes na religião da chocolateria de bom nível. É o meu caso, levo o ritual a sério e, qual extremista, depois do almoço passo lá sempre para fazer assentar o repasto e digerir um livro. Segui dali para o Bengal Taj Hotel, onde me tinham pedido que esperasse pelo Mr. Ravi. Cheguei um pouco mais cedo e na hora prevista compareceu o anfitrião da visita que se ia seguir, acompanhado do sobrinho e de, presumo eu agora, um amigo dele.
‘Rui, bom dia, que tal Calcutá depois de uma semana? E o trabalho corre bem?’, pergunta-me ele.
‘Até agora não podia estar a correr melhor, depois de um ou dois dias de habituação, já me sinto em casa’, digo-lhe eu. Em tom de brincadeira lá me diz que muitas das pessoas deslocalizadas pela empresa para cá se sentem azaradas no início mas acabam por não querer voltar. ‘Há qualquer coisa especial nesta cidade de facto’, leva-me a concordar. Nisto chega um jeep da polícia e outro à civil. ‘Vamos’, diz o Mr. Ravi. ‘O meu amigo chegou!’. Já sabia ao que ía, só desconhecia a amplitude do arranjo. Sai do carro um homem nos seus sessentas, bem vestido - com uma túnica azul, calça branca e sandália distinta -, cabelo puxado para trás e óculos demodé. Tinha acabado de ser apresentado ao líder da oposição de Calcutá, que ao que parece anda em conversações com o congresso local para uma aliança que destrone a já antiga maioria comunista. Apressou-se a entrar no carro e eu, juntamente com o sobrinho e o amigo entrámos num Toyota branco, impecavelmente limpo, com ar condicionado - luxo que ainda não tinha sentido em Calcutá - e um Alpine que pelas colunas de trás explodia um beat cool, bem indiano. À frente o motorista.
A viagem que normalmente demoraria 2 horas, levou-nos apenas 1 hora a percorrer. Os limites de velocidade foram escrupulosamente cumpridos mas o facto de termos um carro batedor da polícia a escoltar-nos - dada a personalidade que ali ía - tornou as coisas bem mais rápidas. Íamos a caminho de Tarakeswar, local sagrado dedicado ao Deus Shiva e onde todos os ‘mês 5’ do calendário hindú (o mês de Julho para nós) de cada ano, milhares de fiéis de todas as proveniências aqui vêm para prestar divino tributo. O rito é simples: cada fiel transporta aos ombros dois potes cheios de água proveniente do Ganges (o rio sagrado para os hindús, que nasce nos Himalaias), cada um deles preso às extremidades de uma cana de bambú e decorado com panos coloridos, flores e todo o tipo de ornamentos que se possa imaginar. Vão em direcção a Tarakeswar, local onde está o templo e onde deverá ser vertida a água. Em procissão vai também um cortejo alegórico com figuras de deuses que, embora longe dos 36 mil existentes para os hindús (há inclusivamente um Deus dos livros, porque como faz questão de clarificar o Rishabh e eu concordo, faz todo o sentido que o conhecimento seja deificado) é suficiente para fazer parecer isto um desfile de carnaval. São milhares de pessoas que vamos encontrando ao longo destes 80 km que estamos a percorrer, entremeados por estações onde se pode parar para refrescar e descansar. É um festival de cor impressionante, e uma espiritualidade que contagia. Há velhos, novos, ricos e pobres, descalços, doentes, deficientes, mas nestas diferenças reforça-se a união. Distante da penitência e do sofrimento patentes na peregrinação a Fátima, esta festa inspira em mim um tipo de sentimento muito diferente.
Chegamos finalmente, não ao templo como eu contava, mas a uma das grandes estações de paragem, da qual o Mr. Ravi é o presidente e, julgo eu, o mecenas. É um local inexplicável: milhares de pessoas, deitadas no chão e onde abrigadas do sol dormem o que podem, outras esperam junto à porta do refeitório onde lhes será servido gratuitamente a refeição do meio dia (e onde mais tarde, para delírio da multidão, me juntei de pernas cruzadas em cima do muro de cimento para com as mãos partilhar o mesmo almoço), algumas vertem copos de água uns atrás dos outros e salpicam os amigos, vendedores ambulantes, polícia à mistura, caminhos elameados, dois templos (onde houve ainda tempo para ser abençoado pelo “feiticeiro” de serviço), uma voz insistente que dum microfone longínquo faz ecoar nas colunas espalhadas pelo local as orações do momento e uma comitiva presumo eu de colonáveis que, junto ao Mr. Ravi nos guiam pelo recinto. Estava a achar estranho a cerimonialidade com que me tratavam (embora um convidado e único estrangeiro ali, estava a achar demasiado cerimonioso), enviando-me sempre para a linha da frente da comitiva, dando-me os melhores lugares para me sentar, apresentando-me a todos os distintos convidados. Tudo se clarificou no entanto no segundo exacto em que ouço o meu nome soar nas colunas (atravancado no meio de palavras indecifráveis das quais percebi ‘Portugal’) e vejo uma das personalidades movimentar-se até mim para, com uma vénia e com um juntar de mãos, inesperadamente e de forma gentil me medalhar com um colar de pérolas e flores. Não mais o tirei. Era agora claro não só para mim como para os milhares de pessoas que ali estavam que, juntamente com o outro tipo que por acaso era o líder da oposição, aquele mal amanhado português de barba por fazer, t-shirt branca e calças de pano era o convidado de honra. Mais não pararam de soar as palmas por onde quer que eu passasse, gesto a que eu sempre que possível (e incentivado pelo Mr. Ravi) respondia com um sorriso sincero e com um aceno de mão. Foi certamente o mais próximo que estive de me sentir uma rockstar, pelo que esta viagem além de tudo o mais encerra também o meu direito legítimo aos cinco minutos de fama a que todos, estou a crer, temos um dia direito.
São 3 da tarde e depois das despedidas regressamos a Calcutá. O ar condicionado que está agora no máximo ajuda a refrear a legítima excitação que este final de manhã e príncipio de tarde me proporcionou, enquanto lá fora os peregrinos, em sentido contrário e ainda longe da próxima estação, fatigados pela carga mas inabaláveis na crença, aguardam já pela sombra que mais adiante irão encontrar. Para mim seguramente transcendente, esta sucessão (quase perfeita) de escolhas fortuitas, de ligações, de sentimentos e de locais, de conhecidos e desconhecidos e de segundos que não poderiam ter sido outros, vai rastilhando esta sucessão de acontecimentos incríveis e de estórias para contar com que este país decidiu presentear-me.
7 e 45 da manhã e toca o telefone. É o sobrinho do Mr. Ravi a adiar para as 10h30 o que estava previsto acontecer às 9h30. Não foi propriamente mais uma hora de sono porque preferi apostar no english breakfast do Flurry’s ali em Park Street. Tornei-me na última semana um habitué do local que é aqui em Calcutá (cidade conhecida também pela boa doçaria) um local sagrado para os crentes na religião da chocolateria de bom nível. É o meu caso, levo o ritual a sério e, qual extremista, depois do almoço passo lá sempre para fazer assentar o repasto e digerir um livro. Segui dali para o Bengal Taj Hotel, onde me tinham pedido que esperasse pelo Mr. Ravi. Cheguei um pouco mais cedo e na hora prevista compareceu o anfitrião da visita que se ia seguir, acompanhado do sobrinho e de, presumo eu agora, um amigo dele.
‘Rui, bom dia, que tal Calcutá depois de uma semana? E o trabalho corre bem?’, pergunta-me ele.
‘Até agora não podia estar a correr melhor, depois de um ou dois dias de habituação, já me sinto em casa’, digo-lhe eu. Em tom de brincadeira lá me diz que muitas das pessoas deslocalizadas pela empresa para cá se sentem azaradas no início mas acabam por não querer voltar. ‘Há qualquer coisa especial nesta cidade de facto’, leva-me a concordar. Nisto chega um jeep da polícia e outro à civil. ‘Vamos’, diz o Mr. Ravi. ‘O meu amigo chegou!’. Já sabia ao que ía, só desconhecia a amplitude do arranjo. Sai do carro um homem nos seus sessentas, bem vestido - com uma túnica azul, calça branca e sandália distinta -, cabelo puxado para trás e óculos demodé. Tinha acabado de ser apresentado ao líder da oposição de Calcutá, que ao que parece anda em conversações com o congresso local para uma aliança que destrone a já antiga maioria comunista. Apressou-se a entrar no carro e eu, juntamente com o sobrinho e o amigo entrámos num Toyota branco, impecavelmente limpo, com ar condicionado - luxo que ainda não tinha sentido em Calcutá - e um Alpine que pelas colunas de trás explodia um beat cool, bem indiano. À frente o motorista.
A viagem que normalmente demoraria 2 horas, levou-nos apenas 1 hora a percorrer. Os limites de velocidade foram escrupulosamente cumpridos mas o facto de termos um carro batedor da polícia a escoltar-nos - dada a personalidade que ali ía - tornou as coisas bem mais rápidas. Íamos a caminho de Tarakeswar, local sagrado dedicado ao Deus Shiva e onde todos os ‘mês 5’ do calendário hindú (o mês de Julho para nós) de cada ano, milhares de fiéis de todas as proveniências aqui vêm para prestar divino tributo. O rito é simples: cada fiel transporta aos ombros dois potes cheios de água proveniente do Ganges (o rio sagrado para os hindús, que nasce nos Himalaias), cada um deles preso às extremidades de uma cana de bambú e decorado com panos coloridos, flores e todo o tipo de ornamentos que se possa imaginar. Vão em direcção a Tarakeswar, local onde está o templo e onde deverá ser vertida a água. Em procissão vai também um cortejo alegórico com figuras de deuses que, embora longe dos 36 mil existentes para os hindús (há inclusivamente um Deus dos livros, porque como faz questão de clarificar o Rishabh e eu concordo, faz todo o sentido que o conhecimento seja deificado) é suficiente para fazer parecer isto um desfile de carnaval. São milhares de pessoas que vamos encontrando ao longo destes 80 km que estamos a percorrer, entremeados por estações onde se pode parar para refrescar e descansar. É um festival de cor impressionante, e uma espiritualidade que contagia. Há velhos, novos, ricos e pobres, descalços, doentes, deficientes, mas nestas diferenças reforça-se a união. Distante da penitência e do sofrimento patentes na peregrinação a Fátima, esta festa inspira em mim um tipo de sentimento muito diferente.
Chegamos finalmente, não ao templo como eu contava, mas a uma das grandes estações de paragem, da qual o Mr. Ravi é o presidente e, julgo eu, o mecenas. É um local inexplicável: milhares de pessoas, deitadas no chão e onde abrigadas do sol dormem o que podem, outras esperam junto à porta do refeitório onde lhes será servido gratuitamente a refeição do meio dia (e onde mais tarde, para delírio da multidão, me juntei de pernas cruzadas em cima do muro de cimento para com as mãos partilhar o mesmo almoço), algumas vertem copos de água uns atrás dos outros e salpicam os amigos, vendedores ambulantes, polícia à mistura, caminhos elameados, dois templos (onde houve ainda tempo para ser abençoado pelo “feiticeiro” de serviço), uma voz insistente que dum microfone longínquo faz ecoar nas colunas espalhadas pelo local as orações do momento e uma comitiva presumo eu de colonáveis que, junto ao Mr. Ravi nos guiam pelo recinto. Estava a achar estranho a cerimonialidade com que me tratavam (embora um convidado e único estrangeiro ali, estava a achar demasiado cerimonioso), enviando-me sempre para a linha da frente da comitiva, dando-me os melhores lugares para me sentar, apresentando-me a todos os distintos convidados. Tudo se clarificou no entanto no segundo exacto em que ouço o meu nome soar nas colunas (atravancado no meio de palavras indecifráveis das quais percebi ‘Portugal’) e vejo uma das personalidades movimentar-se até mim para, com uma vénia e com um juntar de mãos, inesperadamente e de forma gentil me medalhar com um colar de pérolas e flores. Não mais o tirei. Era agora claro não só para mim como para os milhares de pessoas que ali estavam que, juntamente com o outro tipo que por acaso era o líder da oposição, aquele mal amanhado português de barba por fazer, t-shirt branca e calças de pano era o convidado de honra. Mais não pararam de soar as palmas por onde quer que eu passasse, gesto a que eu sempre que possível (e incentivado pelo Mr. Ravi) respondia com um sorriso sincero e com um aceno de mão. Foi certamente o mais próximo que estive de me sentir uma rockstar, pelo que esta viagem além de tudo o mais encerra também o meu direito legítimo aos cinco minutos de fama a que todos, estou a crer, temos um dia direito.
São 3 da tarde e depois das despedidas regressamos a Calcutá. O ar condicionado que está agora no máximo ajuda a refrear a legítima excitação que este final de manhã e príncipio de tarde me proporcionou, enquanto lá fora os peregrinos, em sentido contrário e ainda longe da próxima estação, fatigados pela carga mas inabaláveis na crença, aguardam já pela sombra que mais adiante irão encontrar. Para mim seguramente transcendente, esta sucessão (quase perfeita) de escolhas fortuitas, de ligações, de sentimentos e de locais, de conhecidos e desconhecidos e de segundos que não poderiam ter sido outros, vai rastilhando esta sucessão de acontecimentos incríveis e de estórias para contar com que este país decidiu presentear-me.
2 comentários:
Cara, do jeito que vão as coisas você deveria conhecer Portugal:-) Cuidado para não perder suas raízes...ou, se quiser perdê-las, esteja bem consciente do preço. Depois não volte para Lisboa para ser um velho reclamão, hein?
Tão logo possa, América do Sul.
Não se esqueça.
Grande aventura! histórias destas só mesmo na India... ou na China. Desejo-lhe a continuação de uma agradável viagem por esse caminho espiritual.
Grande abraço
Paulo Chengdu
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