Foram 7 dias, esta primeira estadia fora de Shanghai.
São algumas centenas deles daqui para a frente que ajudarão a construir o resto deste livro. Fecho o primeiro volume do Brucelee precisamente aqui. Já lá vai o primeiro mês na China. Já deu para sentir o que é viver neste país. Especialmente depois desta semana a deambular pela província de Sichuan, bem longe da confusão de Shanghai. Já deu para sentir as diferenças entre ser português e chinês, viver na cidade ou no campo e sentir saudades de casa. Esta semana serviu para tudo isso. Para sentir o desconforto de não me conseguir fazer entender, de querer perceber a ementa de um restaurante e não conseguir, de querer uma casa de banho limpa e nem vê-la, de ter de decidir entre comer uma coisa que não me apetece ou então não comer, de passar por pessoas que com 500eur por ano conseguem levar a vida para a frente, de ver sítios que insistem em resistir à globalização.
Acima de tudo, este primeiro volume fecha com fortes ensinamentos pessoais, uma espécie de "chapada" cultural vigorosa, um pouco mais de argumentos que me ajudam a perceber porque duas pessoas iguais, de carne e osso, olham para o mesmo assunto, vêem a mesma coisa, interpretam o mesmo sinal, sentem a mesma atitude, de formas diametralmente opostas. Sente-se algum desconforto inicialmente. Mas rapidamente passa a uma avidez desmesurada, uma espécie de
primeiro estranha-se, depois entranha-se. Acima de tudo faz-nos sair do nosso pequeno mundo. Na pior das hipóteses, o meu mundo tem hoje mais de 10 milhões de habitantes...
Antes de prosseguir, sinto-me na obrigação de uma pequena nota, para serenar expectativas. O intuito do
brucelee não é ser uma versão assassinada de um qualquer Guia de Viagem, com descrições diárias dos locais, dos horários, dos
must do's e must don'ts. Guias há muitos, e recomendáveis. Prefiro antes partilhar convosco pequenas situações e algumas leituras que faço do que por aqui me vai acontecendo. Preferi por isso perder um tempo a encontrar na net uma aplicação amigável que me permita disponibilizar-vos algumas das fotos e deixar a vossa imaginação viajar e questionar. Mas mais do que isso, com um sentimento assumidamente sádico, colocar em cima da mesa a derradeira prova daquilo que estão a perder.
Lição1: A teoria da relatividade na China propaga-se a uma velocidade superior à da luz.a)Sim, tudo é relativo.Basta um tempo e um espaço. Percebi isso a 10mil pés de altitude, na viagem para Chengdu. Estenderam-me o tabuleiro e escolhi
jïrou. Retiro a tampa, lá estão uns pedações de galinha, arroz branco e uns bróculos cozidos a vapor, com um ar bem ocidental.
Na Europa, a estratégia quanto à chamada comida de avião é simples: é comer o menos possível. Lá se começa pelo pão com manteiguinha, abre-se o prato principal, encosta-se alguma coisa para o lado e come-se o resto, e "vamos embora" à sobremesa. Quando se aterrar, encontra-se um qualquer McDonald's e lá se faz o gosto ao bandulho. Comida de avião,
vade retro!Na China, senti em toda a sua força o que é a relatividade. Andava há 3 semanas a auto-convencer-me das virtudes da comida chinesa mas acho que vou precisar de ajuda. Estava a caminho de Sichuan, onde supostamente vive a melhor cozinha na China. Já não caio nesse "31 de boca".
Porque amanhã não sei o que aí virá, era ver-me a comer aquele pitéu como se fosse a última refeição no Mundo. Survi até o último grão de arroz, pão no molho, lamber os dedos e esperar que haja para repetir. Estava bom? Não, estava maravilhoso...3 estrelas
Michelin!b) Sim, uma mesma definição em Portugal e na China sugere diferentes visualizações mentais.Dizer "porco" em Portugal significa "porco". Na China significa "imundo". "Barato" em Portugal significa "barato". Na China significa "pechincha". Em Portugal "simpático" significa "simpático". Na China deve querer significar "irritantemente chato". Parece não haver um ponto de contacto entre as definições, o que torna qualquer coisa numa autêntica surpresa.
A minha visualização mental de "porco" mudou. Admito que sim. Vi coisas na China que nem em África vi. O problema mais crónico são as casas-de-banho públicas que encontramos no interior deste país, quando o autocarro pára para uma pausa de 1o minutos, a caminho da próxima aldeia. Uma velhota pede 50cêntimos para podermos utilizar as instalações. Confesso que ainda não percebi para que é utilizado esse dinheiro. Entramos e de repente deparamo-nos com algo de completamente novo. Não existe retrete. Nem sequer um buraco, ao bom estilo turco. Apenas uma vala comum que por baixo das várias "cabines" vai trilhando o seu caminho até ao ponto de águas mais próximo. Chamar-lhes "cabines" é um eufemismo claro. São divisórias de meio metro. Ainda sentado, consigo ver a cara do tipo do lado. Deve ser bom para irmos comentando o jogo do fim-de-semana, mas o meu chinês é insuficiente. À minha frente, onde deveria estar uma porta, está um chinês a lavar as mãos. Sim, não há portas. Não é que as tivessem arrancado, num acto terrorista. Não há mesmo. Não faz parte. Tentei investigar porquê e é aparentemente simples. A cultura chinesa não conhece bem a noção de privacidade. Como é usual na China mais pobre, as famílias vivem em espaços muito pequenos, apinhados de gente, onde ter um quarto e uma casa-de-banho é, na verdade, um luxo. A privacidade não existe. E se não existe, para quê ter portas? Queres, queres! Não queres, vai ao mato, com -5ºC! Havia mais para dizer, mas não consigo descrever o cheiro em palavras.
Surpreendente também é o comportamente dos próprios chineses na camioneta que nos leva. Há pequenos caixotes do lixo, redondos, de plástico, espalhados pelo corredor. Minuto após minuto, bem cá do fundo, uma mucosa estridente sai cá para fora. Pfff, directo para o caixote. Homens e mulheres não há distinções.
Já chega? Calma... Melhor ainda! Se não aguentas até à próxima paragem, é "obrar" para o caixote. Eu vi! Com estes 2 que a terra há-de comer.
c)Sim, a chamada paciência chinesa não tem limites.Surpreendente mesmo foi o estado em que deixámos um restaurante chinês em Leshan. A culpa foi das horas, porque começámos a jantar ainda não eram 19h. Meteram-me numa sala privada só para nós. Tínhamos conhecido um turco nesse dia, que já anda pela China há uns tempos em trabalho. Andava meio sozinho e resolveu alistar-se na comitiva portuguesa. Parece uma personagem saída dum filme do Indiana Jones. Um tipo porreiro, de boa conversa que alinhou connosco. Começámos a mandar vir cervejas, licores chineses e não podia dar bom resultado. Às 21h estava montada uma autêntica banda: eu na percussão, com garrafas vazias de
Tsingtao, fazia batuques na mesa de madeira. Outros com os pauzinhos davam o compasso na panela. Havia os
lead singers e os
backvocals. Deixámos o restaurante às 24h, num verdadeiro estado de sítio. Comida pelo chão, garrafas partidas, uma mesa caótica, admito que vizinhos sem dormir. Com a simpatia que nos caracteriza, saímos pela porta grande, com um
Zai jian e um até à próxima. Mesmo depois daquela barulheira infernal e dos estragos causados, responderam no mesmo tom de simpatia, ou paciência, acredito mais.
Acabámos a noite num karaoke, com mais umas quantas garrafas de cerveja em cima da mesa. O turco, depois de tanto
gânbei não se aguentou. Se é festa, é até cair. Enquanto cantávamos os últimos hits chineses, o turco marcava o ritmo, com um ressonar que embora perturbador, demonstrava o seu estado tranquilo. Sei que nunca mais se esqueceu dessa noite. Nos dias que se seguiram andou connosco. Já tinha medo de se juntar a nós para jantar porque não se sabia bem quando o próximo
penálti estaria para chegar. Sempre que se falava em cerveja, era ver o homem a transpirar. Mas uma coisa é certa. Sempre disse, até ao final:
I've never had a night like this, entre um sorrir sincero e um nervosismo latente.
Partiu em direcção a Kanding, quando nós subimos para Jiuzhaigou. Sempre com a sua garrafa de água, não lhe fosse dar a secura...